Hoje em dia está na moda a frase: ‘defesa da democracia’. Ligamos a TV e lá está o sujeito, todo posudo e cheio de si, fantasiado de jornalista, dizendo que a autoridade A ou B fez isso ou aquilo em ‘defesa da democracia’. Quer dizer, o agente público seria uma pessoa ‘do bem’, uma espécie de Jedi, e seus atos se justificariam para que todos nós vivamos no éden democrático brasileiro, sempre ameaçado pelas forças ‘do mal’. Fazem crer que (como na saga Star Wars) os Sith estão por aí à espreita, prontos para ‘dar um golpe’, acabar com a República e instaurar seu Império.

O discurso acima referido é até bonito, não fosse o fato de que tem lado e está se lixando para a verdadeira democracia. Na realidade, essa defesa acalorada de pessoas e seus atos (em explícita passada de pano), tem por objetivo colocar os opositores no campo do submundo, do ilícito, dos agentes malignos, enquanto aqueles que professam ideologia semelhante à do comunicador estão sempre certos, posto que querem nosso bem. Algo um tanto bíblico, em certa medida patológico.

Amigo leitor, a grande vantagem de não ter político de estimação, ou ditador favorito, é que estamos sempre atentos aos fatos e não às narrativas… Quer dizer, conseguimos conceber, sem paixões, o que seja democracia e o que representa ditadura, bem como podemos identificar melhor quais agentes estão efetivamente comprometidos com esta ou com aquela. Em suma, somos menos enganados. Tenha isso com clareza: ser livre e bem informado é transformador, em qualquer área.

No dia 29/05/2020 (isso mesmo – no início do ano 2020!), publiquei aqui no Blog uma coluna intitulada “Nossa Democracia Acabou! (se é que existiu)”[1]. Naquela oportunidade me dediquei a abordar um tema específico: a instauração, de ofício pelo STF, do chamado ‘inquérito das fake news’. Vejamos um trecho daquilo que escrevi: “o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Min. Dias Toffoli, invocou o artigo 43 do Regimento Interno daquela Corte (que data de 27/10/1980) para instaurar um Inquérito Policial ‘de ofício’. Nenhum problema se esse dispositivo não fosse flagrantemente inconstitucional! Afinal, o órgão julgador não pode ser, ao mesmo tempo, investigador. Pior, designou ele, como Relator, o Min. Alexandre de Moraes, o que implica numa segunda inconstitucionalidade, afinal, não houve sorteio. Essa escolha, ad hoc, traz a odiosa figura do ‘tribunal de exceção’, combatido com veemência pela CF/88. Então se instaurou o Inquérito 4.781, cujo objeto seria apurar ‘fake news’, bem como ‘ofensas e ameaças contra integrantes do STF’. Ou seja, os julgadores também seriam as próprias vítimas, além de investigadores. Tudo muito errado, se considerarmos uma democracia (grifei).

Naquela ocasião, frisei ainda um fato relevante: “o grande problema, aquele que hoje está fora do noticiário, é que esse Inquérito foi instaurado em 14/03/2019, ou seja, há mais de um ano”. Agora estamos no ano de 2024 (após a morte de nosso senhor Jesus Cristo) e esse inquérito segue aberto, a todo vapor, tirando perfis de pessoas e veículos de comunicação de redes sociais, aplicando multas, desmonetizando, ordenando bloqueios de bens, prisão de pessoas e outras coisas mais. São, portanto, 5 anos de um tribunal de exceção, instaurado na mais alta cúpula judiciária do país! Pior: este primeiro inquérito gerou muitos filhotes. E, mais surreal: ninguém sabe precisar quantos são os inquéritos, que tramitam em sigilo, sob a batuta do censor da República, o Min. Alexandre de Moraes. Menos ainda quais e quantos são seus alvos. Mas, como somos advertidos diuturnamente pelos canais midiáticos de maior envergadura: isso é ‘para o bem da democracia’.

Sucede que, ontem (13/08/2024), foi veiculada extensa reportagem pela Folha de São Paulo[2], curiosamente da lavra do jornalista Glenn Greenwald (o mesmo da ‘Vaza Jato’), onde são trazidos elementos colhidos em mais de 6 gigabytes de mensagens e arquivos trocados via WhatsApp por auxiliares de Alexandre de Moraes, entre eles o seu principal assessor no STF e outros integrantes da sua equipe no TSE e no Supremo – afirma a matéria do aludido jornal que: “o gabinete de Alexandre de Moraes no STF ordenou por mensagens, e de forma não oficial, a produção de relatórios pela Justiça Eleitoral para embasar decisões do próprio ministro contra bolsonaristas no inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal durante e após as eleições de 2022. Diálogos aos quais a reportagem teve acesso mostram como o setor de combate à desinformação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), presidido à época por Moraes, foi usado como um braço investigativo do gabinete do ministro no Supremo”.

Numa reportagem complementar, datada de 14/08/2024, a Folha de São Paulo[3] trouxe outros detalhes do caso, apontando que: “os diálogos mostram também que os relatórios eram ajustados quanto não ficavam a contento do gabinete do STF e, em alguns episódios, foram feitos sob medida para embasar uma ação pré-determinada, como multa ou bloqueio de contas e redes sociais”. Há ali a transcrição de trechos de conversas entre os assessores de Alexandre de Moraes lotados tanto no TSE quanto no STF – há solicitações para que fossem gerados relatórios contra “revistas golpistas” de modo a desmonetizá-las nas redes (p.ex. a revista Oeste[4]): ali o assessor do TSE retorna, tempos depois, dizendo que teria encontrado somente “publicações jornalísticas”, que “não estavam falando nada” e pergunta ao solicitante o que deveria, então, colocar no relatório. Ao que o assessor de Moraes no STF respondeu: “use sua criatividade… rsrsrs”, e completou: “pegue uma ou outra fala, opinião mais ácida”. Então, o agente do TSE replicou: “vou dar um jeito rsrsrs”. Mais à frente na reportagem, tendo enviado um determinado relatório, o mesmo agente do TSE pontua: “veja se o ministro vai gostar”. Ao que o solicitante no STF respondeu: “gostou e está disparando ordens”. Ilustre leitor, até mesmo uma Desembargadora do TRF-1 foi alvo de solicitação desse tipo de dossiê, por parte do gabinete de Moraes ao TSE, o que teria se dado da seguinte forma: “prepare o relatório para abrirmos uma PET e oficiarmos o CNJ”.

Você pode achar tudo isso muito normal. Mas, advirto com veemência: não é!! Tal sorte de fatos é algo típico de um Estado de exceção. Quer dizer, totalmente incompatível com uma democracia. Aliás, muitos vão tentar fazê-lo acreditar que não existe problema algum aí… A começar pelos próprios ministros do Supremo Tribunal Federal que, aliás, já saíram rapidamente em defesa de Moraes – conforme noticiado pela CNN Brasil[5]: “(…) após virem à tona mensagens de funcionários de seu gabinete, Alexandre de Moraes recebeu apoio de outros ministros do Supremo Tribunal Federal, que classificam de antidemocrática a ‘tentativa de criminalizar’ métodos do ministro. A CNN conversou com, ao menos, três ministros do STF. Para eles, Moraes é um magistrado consciente e que tem adotado posturas absolutamente corretas(grifei).

Ocorre que, há quem pense diferente. Nesse sentido, trago aqui trecho da opinião da jornalista Rachel Landim, veiculada no site do UOL[6]: “na época da Vaza Jato, escândalo do vazamento de mensagens trocadas entre o juiz Sérgio Moro e os procuradores da Operação Lava Jato, os operadores do direito se dividiram entre lavajatistas e garantistas. (…) Agora o ministro Alexandre de Moraes está em situação bem similar. Mensagens reveladas pela Folha de S. Paulo mostram que seu juiz instrutor pedia relatórios ao departamento de inteligência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e que esses relatórios eram utilizados nas decisões do ministro para julgar e condenar políticos bolsonaristas. (…) É como se Moraes atuasse como Moro, só que sequer havia um Deltan — todos os papeis eram ocupados por ele mesmo. Com um agravante: Moro foi declarado parcial pelo Supremo. Moraes é a última instância. A única pressão que pode sofrer é da sociedade, dos pares, e, eventualmente, do Senado”. Ora, já sabemos que não haverá pressão alguma de seus ‘pares’ (os ministros do STF). Haverá alguma pressão efetiva do Senado? Parece que sim, conforme a própria CNN Brasil[7]noticiou, estaria em curso um pedido de impeachment.

A respeito desse tipo de iniciativa, que pode advir do Senado, vejamos o que disse o jurista Wálter Maierovitch, em artigo de opinião também veiculado hoje (13/08/2024), no site do UOL[8]: “A matéria, com casos concretos sendo citados, mostrou o emprego de três componentes que não combinam com administração da Justiça: perseguição, abuso de poder e desvio de função. (…) Um juiz inquisidor, como Moraes apresentou-se no caso da matéria jornalística, subtraiu funções de órgão de atuação persecutória, como o Ministério Público e a polícia. Moraes abusou ao colocar as estruturas do Supremo e do STF para uma sua atuação com abuso de poder. Atenção: abuso de poder é causa para impeachment, com tipificação de crime de responsabilidade”.

Bem, o que posso dizer, amigo leitor? Ora, aquilo que está errado segue sendo um equívoco, ainda que todos estejam fazendo – ainda que um ministro do STF o esteja fazendo!! Nesse sentido, vou aproveitar aqui um raciocínio que já externei, por escrito e neste mesmo Blog[9], em 11/02/2021, quando das mensagens expostas pela ‘Vaza Jato’ (caso similar ao agora desvendado, talvez até menos grave): “acusação e julgador formaram uma espécie de ‘Liga da Justiça’, atropelando diversos direitos que são constitucionalmente assegurados. Por esta razão, vindo esse estado de coisas à luz do dia, boa parte das condenações será anulada. Processos serão reiniciados e, talvez, os réus possam vir a ser condenados novamente – se não ocorrer a prescrição dos delitos, é claro. (…) Perceba, ilustre leitor, quando se tenta contestar com veemência os ministros do STF, por meio da internet, rapidamente eles sacam em seu favor o inconstitucional inquérito das ‘fake news’. Quer dizer, contra eles não vale. (…) E, reparem, os métodos ali utilizados podem vir a ser empregados contra você, leitor, no dia de amanhã. (…) Não há salvação quando se aceita passivamente que ‘os fins justificam os meios’, não justificam!”.

Ademais, para complementar meu raciocínio a respeito, trago ainda outro trecho, agora de uma coluna por mim publicada no Blog em 07/12/2020[10], onde eu disse o seguinte: “nossa República está doente. As chamadas ‘instituições’, que deveriam funcionar para evitar que a democracia se perca, aqui parecem colaborar para que a ditadura se instaure. Não custa lembrar que ditadura não necessita de revolução e tiros. Basta que um grupo se perpetue no Poder, oprimindo continuamente setores e interesses da sociedade. Segundo tal premissa, estamos a uma distância razoável de um país plenamente democrático”. Em síntese, só haveria democracia aqui se tal conceito fosse relativo, como já se disse por aí em dado momento… Aliás, se nos democratizarmos ainda mais, podemos até chegar ao patamar hoje vivenciado na Venezuela.

No filme ‘O Sétimo Selo[11] (Suécia, Idade Média), um cavaleiro, após as cruzadas, embora tenha lutado pela cristandade, tem dúvidas sobre a existência de Deus. A peste devasta o país, e, em meio ao ambiente de pessoas condenadas à fogueira, acusadas de bruxaria, ao invés de se encontrar com Deus, ele se depara com a morte em carne e osso (imagem que ilustra esta coluna, ao lado da imagem de Moraes – inspiração esta que veio da conta da jornalista Lygia Maria, no Twitter).

Após propor uma partida de xadrez com a morte, para ganhar um pouco mais tempo no mundo dos encarnados, no 3º ato do filme, o cavaleiro chega a uma capela e, sem saber que a figura envolta num manto preto era a própria morte, supondo ser um padre, resolve ele se confessar. Transcrevo a seguir um pequeno trecho desse diálogo, cheio de simbolismo:

(Cavaleiro) Quero confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O vazio é um espelho que reflete no meu rosto. Vejo minha própria imagem e sinto repugnância e medo. Pela indiferença ao próximo, fui rejeitado por ele. Vivo num mundo assombrado, fechado em minhas fantasias.

(A morte – disfarçada) Agora quer morrer?

(Cavaleiro) Sim, eu quero.

(A morte) E pelo que espera?

(Cavaleiro) Pelo conhecimento. (…) Quero conhecimento, não fé ou presunção. Quero que Deus estenda as mãos para mim, que mostre seu rosto, que fale comigo. Mas Ele fica em silêncio. Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve.

(A morte) Talvez não haja ninguém.

Enfim, para não vivermos no vazio, com indiferença, fechados em nossas fantasias, como confessa o cavaleiro do filme, é preciso termos conhecimento. Ou seja, uma postura ativa, de buscar a verdade neste mundo assombrado. Agora, com as revelações da Folha de São Paulo, o rei está nu! Ocorre que acima do STF só há Deus. Mas, como advertiu a morte: talvez não haja ninguém

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado