Caro leitor, como tive a oportunidade de expor em outra coluna[1], datada de 18/02/2020, o Brasil não é um país muito democrático, infelizmente. E essa afirmação não está ancorada somente na opinião deste colunista, mas, em nossos vários eventos políticos.

Vejamos: após o período colonial, em 07/09/1822, D. Pedro de Alcântara, filho de D. João (regente português), declarou nossa independência e tornou-se Imperador do Brasil. Uma espécie de “golpe” em família. Depois, em 15/11/1889, houve um novo “golpe”, político-militar, que implicou na Proclamação da República, instaurando a forma republicana presidencialista de governo no Brasil, encerrando a monarquia constitucional parlamentarista do Império e, por conseguinte, destituindo o então chefe de estado, imperador D. Pedro II. Nossa jovem República foi então governada pelo que se denominou por “política do café com leite”, com predominância do poder nacional por parte das oligarquias paulista e mineira. Até ali, praticamente não houve democracia.

Depois veio o Estado Novo, um regime instaurado por Getúlio Vargas em 10/11/1937, que vigorou até 31/01/1946, marcado pela centralização do poder, nacionalismo, anticomunismo e autoritarismo. Posteriormente, tivemos a Ditadura Militar, instaurada em 01/04/1964 e que durou até 15/03/1985, cujas características são praticamente as mesmas já citadas para o Estado Novo. Ou seja, foram duas grandes ditaduras.

Então, dali em diante, vivemos o atual estágio, sob a égide da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Ufa! Enfim a glória de democracia, não é mesmo? Porém, é importante anotar ainda que: o primeiro presidente eleito, por voto direto e universal, Fernando Collor de Mello, foi deposto por impeachment. O segundo, Fernando Henrique Cardoso, escandalosamente propôs (e fez aprovar) uma Emenda à Constituição que viabilizou sua reeleição para o cargo. Tivemos então a era de governos do PT, com a eleição e reeleição de Lula, assim como de Dilma Rousseff, que deixou o Poder após seu impeachment no ano de 2016, tendo assumido Michel Temer. E aqui nem vou entrar no mérito dos dois impeachments, decida você se houve “golpe” ou não. Então, viemos parar em Bolsonaro.

De se ver, portanto, caro leitor, que nossa história é uma sucessão de ditaduras, golpes, solavancos, derramamento de lágrimas e até de sangue. Praticamente todas as gerações viveram sob essas condições (inclusive a nossa). Então, é preciso ter com clareza que nós, brasileiros, não somos um povo muito democrático, infeliz e lamentavelmente. É fato!

Postas essas premissas, vejamos como anda o estado de coisas que hoje chamamos de ‘poderes institucionais democráticos’: Executivo, Legislativo e Judiciário. É desolador!

Nosso Executivo, respaldado pelas forças militares, a cada dia cria uma nova crise sem precedentes. Até que, no dia seguinte, supera a crise do dia anterior. O Legislativo, por sua vez, criou o chamado “parlamentarismo branco” e vem cercando o Executivo com seu orçamento impositivo e, inclusive, tencionou criar um orçamento próprio de R$30 bilhões, que ficaria a cargo exclusivo do relator-geral do orçamento (o que foi vetado).

Porém, escrevo hoje para abordar outro Poder, talvez o que menos aparenta características tirânicas: o Judiciário. E aqui vou pinçar o tema do momento: o Inquérito das fake news.

O Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Min. Dias Toffoli, invocou o artigo 43 do Regimento Interno daquela Corte (que data de 27/10/1980) para instaurar um Inquérito Policial “de ofício”. Nenhum problema se esse dispositivo não fosse flagrantemente inconstitucional!! Afinal, o órgão julgador não pode ser, ao mesmo tempo, investigador. Pior, designou ele, como Relator, o Min. Alexandre de Moraes, o que implica numa segunda inconstitucionalidade, afinal, não houve sorteio. Essa escolha, ad hoc, traz a odiosa figura do “tribunal de exceção”, combatido com veemência pela CF/88. Então se instaurou o Inquérito 4.781, cujo objeto seria apurar “fake news”, bem como “ofensas e ameaças contra integrantes do STF”. Ou seja, os julgadores também seriam as próprias vítimas, além de investigadores. Tudo muito errado, se considerarmos uma democracia.

Aliás, o grande problema, aquele que hoje está fora do noticiário, é que esse Inquérito foi instaurado em 14/03/2019, ou seja, há mais de um ano. E a primeira medida do Relator foi censurar reportagem jornalística do site ‘O Antagonista’ e a matéria de capa da revista ‘Crusoé’, que citavam Toffoli como sendo o “o amigo do amigo de meu pai” na planilha de codinomes dos beneficiários de propinas pagas por Marcelo Odebrecht… Tudo conforme reportagem da época publicada no Correio Brasiliense[2]. Além de ter multado tais veículos de imprensa em R$100 mil, Moraes ainda determinou que a Polícia Federal cumprisse mandados de busca e apreensão contra oito pessoas que criticaram o Tribunal nas redes sociais. Tudo isso motivou procuradores, deputados, senadores e entidades de classe, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Transparência Internacional, a se manifestaram contra o Inquérito e as decisões nele tomadas pelo Tribunal, àquela época.

A Procuradora-Geral de República àquela altura, Raquel Dodge, ante ao absurdo e à arbitrariedade daquele Inquérito, promoveu seu “arquivamento” em 17/04/2019, dando concretude à missão institucional do Ministério Público Federal. Porém, Alexandre de Moraes afastou tal pretensão, dizendo: “O pleito da DD. Procuradora-Geral da República não encontra qualquer respaldo legal, além de ser intempestivo, e, se baseando em premissas absolutamente equivocadas, pretender, inconstitucional e ilegalmente, interpretar o regimento da Corte e anular decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal”. Incrível! E, de lá pra cá, o referido Inquérito vem sendo prorrogado, por determinação de Dias Toffoli, sem que haja qualquer conclusão (ou acusação).

Esse mesmo Inquérito serviu depois para que Alexandre de Moraes requisitasse cópia integral das mensagens hackeadas de procuradores da Lava-Jato e do ex-juiz Sérgio Moro, divulgadas pelo site ‘The Intercept Brasil’ – ele queria checar se alguma coisa ali se relacionava a algum Ministro do STF. E mais: nesse mesmo Inquérito foi determinada também, em 27/09/2019, uma busca e apreensão na casa de Rodrigo Janot, que era o Procurador-Geral da República antes de Raquel Dodge. Foram apreendidos seu celular, seu tablet, além de sua pistola e munições (funcionais), porque Rodrigo Janot revelou em seu livro de memórias que, numa certa ocasião, pensou em assassinar o Ministro Gilmar Mendes do STF. Tudo isso conforme matéria veiculada na época pelo Jornal El País[3].

Mas, esse Inquérito ganhou notoriedade mesmo agora, no último dia 27/05/2020, quando o Ministro Alexandre de Moraes determinou 29 mandados de busca e apreensão, que foram cumpridos contra o ex-deputado Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB, o dono da Havan, Luciano Hang, o empresário Edgard Corona, dono da rede de academias Smart Fit, o investidor Otávio Oscar Fakhoury, bem como contra assessores do deputado estadual paulista Douglas Garcia. Estão sendo investigados ainda 08 parlamentares: os deputados federais Bia Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP), Daniel Lúcio da Silveira (PSL-RJ), Filipe Barros (PSL-PR), Junio do Amaral (PSL-MG), Luiz Phillipe Orleans e Bragança (PSL-SP); e os deputados estaduais Douglas Garcia (PSL-SP) e Gil Diniz (PSL-SP). Tudo conforme divulgado pela Folha[4] e O Globo[5].

Mas, o atual Procurador-Geral da República, Augusto Aras, pediu em 27/05/2020 que o STF “suspenda” o referido Inquérito, até que o Plenário avalie sua constitucionalidade[6].

Veja, portanto, ilustre leitor, que se o “Guardião da Constituição”, como é conhecido o STF, está fazendo toda essa balbúrdia jurídica, há mais de ano, com base nos interesses de seus próprios Ministros, o que podemos esperar das demais instituições? Nosso tecido social está sendo rasgado pela pandemia e suas consequências econômicas. E os ilustres membros de Poder estão trabalhando duro para matar a atual democracia. Dias tristes!

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado