Na última terça-feira (09/02/2021), por quatro votos a um, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve decisão do ministro Ricardo Lewandowski, que autorizou o compartilhamento integral de mensagens (obtidas na Operação Spoofing) com a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Conforme reportagem da CNN Brasil[1], entre as mensagens, estão diálogos protagonizados por nomes ligados à Operação Lava Jato, como o ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro e procuradores, como Deltan Dallagnol. Tais mensagens são citadas por Lula como argumento para que Moro seja declarado suspeito para julgá-lo e, assim, a sua condenação do caso do Tríplex seja anulada, bem como, talvez, a própria condenação do Sítio de Atibaia, já que Moro participou do início deste processo, embora não tenha sido o juiz prolator da sentença.

O referido acesso à íntegra do material pela defesa foi bastante alardeado na imprensa porque, invariavelmente, conduzirá à declaração de suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para julgar Lula. E essa declaração de suspeição ocorrerá em outro processo que tramita no âmbito do STF, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes – que disse que pautará o aludido caso logo após o Carnaval, conforme divulgado pela CNN Brasil[2].

Os julgamentos acima mencionados se somam ao fim da força-tarefa que atuava dentro do Ministério Público Federal no Paraná, anunciada no último dia 03/02/2021. Os quadros do MPF que atuavam na força-tarefa há 07 anos serão incorporados ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), de acordo com matéria da Folha[3].

Enfim, a Operação Lava Jato caminha para seu encerramento formal, embora haja inúmeros processos ainda em trâmite (e que continuarão até seu trânsito em julgado). Iniciada em março de 2014, perante a Justiça Federal em Curitiba, a operação conta com desdobramentos na Justiça Federal no Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo, além de inquéritos e ações tramitando no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, ao menos 12 países iniciaram suas próprias investigações a partir de informações compartilhadas por acordos de cooperação internacional. Não vou replicar aqui a história e os feitos da Lava Jato. Sugiro ao leitor que o faça acessando o site do próprio MPF[4], onde tais informações estão compiladas.

De toda sorte, para deixar apenas um breve resumo, nesta coluna, colaciono o balanço divulgado no dia 08/02/2021 pelo ministro Edson Fachin[5], relator da Lava Jato no âmbito do STF: 1) somente no STF foram 221 mandados de busca e apreensão, 12 prisões preventivas, 02 prisões temporárias, 29 denúncias, 102 acusados e 04 condenações; 2) na esfera da força-tarefa do Paraná somaram-se 1.450 mandados de busca e apreensão, 132 prisões preventivas, 163 prisões temporárias, 130 denúncias, 533 acusados e 278 condenações; 3) Não foram divulgados dados relativos aos braços da Lava Jato no Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo, entretanto, já foram recuperados mais de R$4 bilhões por meio de 185 acordos de colaboração e 14 de leniência, sendo que outros R$10 bilhões ainda serão devolvidos aos cofres públicos, conforme notícia da Jovem Pan[6].

Pois bem, atuo na área criminal há 19 anos. Minha experiência envolve trabalho como estagiário oficial do Ministério Público do Estado de São Paulo por 02 anos, além de atuação como analista concursado da referida instituição por 01 ano. Ademais, trabalhei (e ainda trabalho) como advogado criminalista há 16 anos. Posso assegurar, por ter estado nos ‘dois lados da ponte’, que a vida de réus e acusados em geral não é fácil neste país.

Magistrados em geral, por ampla maioria, tendem a dar ouvidos e deferir pedidos da acusação com muito mais frequência do que o fazem com relação à defesa. Muitas vezes nós advogados somos inclusive confundidos com os réus ou com os supostos crimes que cometeram, de modo que os magistrados nos tratam como párias no Poder Judiciário, como se a Constituição Federal não garantisse a todos (todos!) o direito à ampla defesa.

Enfim, essa é a realidade do país. E posso assegurar que funciona assim pelo menos nas últimas 02 décadas. Claro: não deveria ser assim! Ora, mesmo que tenham um viés mais ‘linha dura’, que sejam ‘mão pesada’ em suas sentenças, os magistrados deveriam no mínimo obedecer aos ditames do Código de Processo Penal (a regra do jogo), bem como tratar com respeito e urbanidade os advogados, tendo em consideração todas as provas que carreiam aos autos, e demais argumentos que utilizam, na defesa de seus clientes.

Posta essa premissa, não me espanta em nada a revelação trazida pelas mensagens obtidas por hackers e divulgadas pelo site The Intercept Brasil e outros veículos de imprensa[7], e depois coletadas (na íntegra) pela Operação Spoofing da Polícia Federal, que inclusive deteve os responsáveis pelo aludido hackeamento. Fica evidente em seu teor que acusação e julgador formaram uma espécie de ‘Liga da Justiça’, atropelando diversos direitos que são constitucionalmente assegurados. Por esta razão, vindo esse estado de coisas à luz do dia, boa parte das condenações será anulada. Processos serão reiniciados e, talvez, os réus possam vir a ser condenados novamente – se não ocorrer a prescrição dos delitos, é claro.

Veja, caro leitor, não é toda a Lava Jato que está contaminada. Mas, parte dela precisa ser revista, de fato. Entretanto, isso não apaga os incontáveis ilícitos e desvios de dinheiro (inclusive restituído em boa parte ao Erário), comprovadamente cometidos. Que fique claro: não atuei na defesa de Lula, então, fica difícil dizer se é culpado ou inocente. Aliás, tivesse eu atuado, seria vedado dizer isso, por sigilo profissional. Então, quem tem que dizer é o Poder Judiciário (não há outro constitucionalmente competente para tanto) – e ele disse que Lula cometeu ilícitos. No caso do Tríplex, não apenas Sérgio Moro, mas, os 03 Desembargadores do TRF-4 e os 05 Ministros do STJ que analisaram o caso e suas provas, sempre à unanimidade. Porém, é preciso seguir a regra do jogo sempre, então, quando o STF declarar a suspeição de Moro, cairá a sentença condenatória e todo o resto. Já o caso do Sítio de Atibaia, sentenciado pela juíza Gabriela Hardt, não está definido, mas, pode ser que o STF igualmente diga que deve retornar à fase inicial, já que Moro o conduziu por um período de tempo, mesmo que os 03 Desembargadores do TRF-4 tenham confirmado a condenação de Lula, com base nas provas produzidas nos autos. Enfim, há um emaranhado de situações – e de outros processos criminais – que envolvem Lula. Sugiro ao leitor se informar melhor a respeito com leituras complementares[8].

A esta altura do campeonato me parece que nem a Lava Jato é totalmente imprestável e nem Lula é totalmente inocente, ao menos se considerarmos decisões do TRF-4 e STJ. Mas, o que me chama a atenção no desenrolar deste imbróglio todo é a postura do STF.

Diz o artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. E essa condenação imutável, claro, pressupõe que se cumpram as regras do jogo, conforme o inciso LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Tais regras estão não só na CF/88, mas também no Código de Processo Penal, que basicamente a repete em seu artigo 283: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado. Essa foi a regra vigente e o entendimento pacífico no STF entre 2009 e 2016. Em fevereiro de 2016, quando os recursos e habeas corpus interpostos em processos relativos à Lava Jato finalmente chegaram ao STF, este último, subitamente, e para respaldar o apelo popular e midiático que havia em torno da referida operação, decidiu mudar de entendimento[9]. O STF passou então a dizer que a presunção da inocência não impedia mais a execução de pena confirmada em 2ª Instância (ou seja, condenações referendadas nos Tribunais).

Não foi só isso. O STF, nas inúmeras vezes em que foi provocado pelas defesas dos réus, afirmou que havia prevenção da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR, para conhecer de todo o qualquer tema relacionado à Lava Jato. Em suma, o STF mandou às favas a competência territorial de vários outros juízes pelo Brasil, como manda o Código de Processo Penal, para adotar uma espécie de ‘competência universal’ nas mãos do ex-juiz Sérgio Moro. Então, em última análise, foi o próprio STF quem referendou os superpoderes da Lava Jato, bem como os métodos que utilizava (operações calcadas em prisões cautelares e prisão para cumprimento de pena já na 2ª Instância, o que redundou em muitas delações).

Ocorre que a Operação Lava Jato passou a bater à porta não só de doleiros, empresários privados (empreiteiros) e servidores de empresas públicas, de economia mista e estatais, mas, chegou aos políticos e outras autoridades de escalão na República. Foi então que começou a incomodar. Daí, após idas e vindas em julgamentos televisionados, mas, em muito incompreensíveis aos leigos da nação, o STF finalmente decidiu, no dia 07/11/2019 que o cumprimento da pena somente poderia começar após esgotamento de todos os recursos[10], vale dizer, após o famoso “trânsito em julgado da sentença condenatória”. No dia seguinte, 08/11/2019 Lula foi posto em liberdade, após mais de um ano detido na Polícia Federal em Curitiba/PR. Agora, as decisões do STF vão cancelar suas duas condenações e devolver seus casos à 1ª Instância em Curitiba/PR, além de devolver a ele seus direitos políticos, viabilizando inclusive eventual candidatura em 2022, se o quiser.

Boa parte dos ministros do STF hoje se exaltam quando apreciam casos oriundos da Lava Jato, dizem inclusive impropérios. Mas, não contam todas as rezas dessa missa… Os cidadãos desavisados não entenderam nada. Mas, nós, os juristas, acompanhamos tudo!

Para finalizar, trago à baila a questão das provas obtidas ilicitamente. Diz a CF/88 em seu artigo 5º, inciso LVI que: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. E o Código de Processo Penal completa, em seu artigo 157: “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. §1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas (…). §5º O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão”. Então, mesmo que os fins pareçam muito nobres, é difícil dizer que provas obtidas por hackeamento deliberado de autoridades possam ser utilizadas em outros processos, ainda que haja ‘ampla defesa’.

O STF simplesmente obteve a íntegra das mensagens hackeadas, que foram objeto da Operação Spoofing (que abordei com mais vagar em outra coluna[11]), e a entregou também na íntegra à defesa de Lula, em outro processo. Tudo! Mensagens particulares, mensagens de outros políticos, mandatários, mensagens do atual ministro da Economia e do atual Presidente da República etc. Foi isso que aconteceu. E, a mim, jurista sem lado, parece que uma iniquidade eventualmente praticada contra Lula não se corrige com outra. Cada situação merece análise aprofundada e séria, sempre seguindo os mandamentos legais.

Perceba, ilustre leitor, quando se tenta hackear ou contestar com veemência os ministros do STF, por meio da internet, rapidamente eles sacam em seu favor o inconstitucional inquérito das ‘fake news’. Quer dizer, contra eles não vale. E não deveria valer contra ninguém! É difícil defender o indefensável… já escrevi detidamente sobre os absurdos praticados pelo STF no bojo do referido inquérito em outra coluna[12]. E, reparem, os métodos ali utilizados podem vir a ser empregados contra você, leitor, no dia de amanhã. E não adianta aparecer no meu escritório e pedir ‘pelo amor de Deus’. Pessoas morreram, deram o sangue, a vida, para que esses direitos fundamentais estivessem na nossa Constituição Federal hoje. Então, não convém aceitarmos que sejam entortados, diminuídos, mesmo que isso seja feito pelo STF, o ‘guardião’ da Constituição. Não há salvação quando se aceita passivamente que ‘os fins justificam os meios’, não justificam!

Então, nesta luta da Lava Jato versus Vaza Jato, há muito a se analisar e debater. Não é possível tomar partido de um lado só no caso. Mas, uma coisa é certa: é preciso que haja mudanças no Poder Judiciário, pois os problemas são muitos, como escrevi outrora[13].

Referências:

[1] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/02/09/stf-julgamento-lula-mensagens-lava-jato

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/02/09/gilmar-mendes-diz-que-tem-expectativa-de-julgar-suspeicao-de-moro-apos-carnaval

[3] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/apos-sete-anos-lava-jato-de-curitiba-e-dissolvida-apuracao-da-forca-tarefa-segue-ate-outubro.shtml

[4] http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/lava-jato/entenda-o-caso

[5] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/02/08/apos-fim-da-lava-jato-no-parana-fachin-divulga-balanco-da-operacao-no-stf.ghtml

[6] https://jovempan.com.br/programas/jornal-da-manha/em-6-anos-lava-jato-recuperou-r-4-bilhoes-e-condenou-165-corruptos.html

[7] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/entenda-os-episodios-da-lava-jato-discutidos-por-moro-e-deltan-em-conversas-vazadas.shtml

[8] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/12/entenda-a-situacao-de-lula-as-apostas-de-sua-defesa-e-os-embates-decisivos-para-2021.shtml

[9] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310153

[10] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=429359&ori=1

[11] http://ricardodantas.blog.br/nao-glenn-nao-pode/

[12] http://ricardodantas.blog.br/nossa-democracia-acabou-se-e-que-existiu/

[13] http://ricardodantas.blog.br/os-problemas-do-judiciario/

FOTO: https://www.google.com/search?q=lava+jato+x+vaja+jato&rlz=1C1GCEA_enBR918BR918&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjwoMbc-uHuAhUBILkGHdIIAeAQ_AUoA3oECAUQBQ&biw=1366&bih=657#imgrc=bTRb9Gt5SbEVCM

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado