Paz e amor! Esse lema da cultura hippie[1], que teve seu apogeu na década de 60 nos Estados Unidos, ainda hoje é professado por diversas pessoas mundo afora. Mais que isso, é uma parte do dogma de diversas religiões. Mas, em tempos bicudos como os atuais, cujos ânimos exaltados ainda foram agravados pela pandemia de Covid-19, o famoso ‘paz e amor’ andava tão em desuso que quase tinha virado artigo de livros de história.

Por vezes, recorre-se a esse velho lema para se referir também a políticos. O ano era 2002 e eu estava no 3º ano da Faculdade de Direito de Franca – FDF (SP). Acordava, escovava os dentes, lavava o rosto, me vestia e colocava no peito, do lado esquerdo (o do coração) a estrela vermelha do PT. Então, tomava café lendo a Folha de São Paulo e o Estadão, que nós da república estudantil rateávamos mensalmente. Depois, era o dia todo fazendo campanha política para Lula, começando pela Faculdade. Fui hostilizado e tratado em tom jocoso diversas vezes, na rua, em reunião de colegas, no estágio e também em casa.

Lula perdeu três eleições antes de ganhar aquela (1989, 1994 e 1998). E só ganhou porque pessoas como eu, na ponta, se engajaram muito para carrear votos de outros que, tradicionalmente, se assustavam com as falas e discursos do Partido dos Trabalhadores e também do próprio Lula. O pessoal mais raiz daquela esquerda sempre brandia contra diversas questões econômicas que serviam de espeque ao Plano Real (que tirara o país da megainflação). Ademais, muito se invocava, abertamente, dos dogmas socialistas. Assim, foi crucial, também, para que vencesse aquelas eleições de 2002, que Lula se convertesse no “Lulinha paz e amor”, moderando o discurso (principalmente o econômico). Tanto que publicou a famosa “Carta ao Povo Brasileiro”[2] em Junho daquele ano, para acalmar o mercado, que ficara em polvorosa por entender que Lula poderia se tornar presidente.

Os motivos que me fizeram votar em Lula e trabalhar voluntariamente em sua campanha, àquela altura, eram três: primeiramente, precisávamos defenestrar o PSDB do Poder, afinal, eles venceram em 1994 com Fernando Henrique Cardozo e, depois de votarem para si mesmos a reeleição (conquistada em 1998), queriam continuar donos da bola com José Serra em 2002 (e talvez mais quatro anos, se fosse reeleito) – isso era inconcebível para uma democracia jovem, que já tinha inclusive vivido o impeachment de Collor; em segundo lugar, como cresci convivendo com pessoas de muitos extratos sociais, sempre tive uma verve mais social de convicções, ante à desigualdade por mim observada ao longo daqueles 20 anos até ali, e em 2002 essa verve estava mais aflorada, é claro, pelo ímpeto juvenil e pelos valores estudantis da Faculdade, que sempre são mais de esquerda – acredito que não exista Faculdade de direita (será?); por fim, morava eu com uma das figuras mais petistas que já conheci na vida (e que hoje também já mudou um pouco de ideia) meu ilustre amigo ‘Catatau’ – ele era muito mais culto que eu, além de muito mais politizado, conhecia todas as figuras do Partido dos Trabalhadores e atestava suas virtudes administrativas e, principalmente, morais – afinal, eles todos se diziam incorruptíveis.

No dia da posse de Lula, chorei. De verdade! Pela primeira vez me senti fazendo parte de algo realmente importante: tínhamos mudado a história do país. Eu tinha certeza que os pobres teriam mais atenção (e efetivamente tiveram), bem como que não veríamos mais casos de corrupção como aqueles noticiados durante a gestão de FHC. Mas, as coisas não andaram bem assim e, já ao final do primeiro mandato, me senti traído. Mais que isso, me senti um idiota, porque confiei em pessoas que eu sequer conhecia – briguei por aquelas figuras históricas do PT, inclusive com amigos e parentes. Nunca mais voltei a fazê-lo!

As eleições então se tornaram uma espécie de ‘confirma’ do PT no Poder. Foi assim em 2006, com Lula e em 2010 e 2014, com Dilma (ex-guerrilheira que também governava com sua faceta “paz e amor”, ao menos sob os holofotes, já que existiam relatos de seus pitis homéricos com subalternos, a portas fechadas). Nunca mais voltei a dar meu voto ao PT. Pode até ser que um dia eu volte a fazê-lo. Vai depender mais do partido que de mim.

Fábio Zanini, repórter da Folha de São Paulo, fez uma bela reportagem sobre Lula ‘paz e amor’[3], contando bastidores que viveu naquela época, na cobertura das eleições e do Governo recém-empossado, depois delas. Escreveu o aludido repórter, numa espécie de resumo moral daquele Governo: “Em 2002, quem dava as cartas na quarta campanha de Lula eram figuras que anos depois iriam cair em desgraça uma a uma. Além do próprio Palocci, hoje um graduado delator de Lula, esse grupo incluía José Dirceu, José Genoino, João Paulo Cunha, Silvio Pereira e Delúbio Soares. Todas figuras com quem eu conversava diariamente. ‘Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder’, cantou Cazuza. ‘Minhas fontes estão na cadeia’, eu poderia complementar”.

Porém, após 580 dias preso, Lula saiu da carceragem da PF e resolveu que não seria mais “Lulinha paz e amor”. Disse num evento em São Paulo[4] que estava “mais maduro”, depois da sua temporada na prisão, complementando que a sua “tranquilidade”, dali em diante seria “infernizar a vida deles” – provavelmente se referindo ao atual Governo e àqueles que tinham trabalhado para colocá-lo atrás das grades, dentro da Operação Lava-Jato. Quer dizer, Lula mandou às favas qualquer tipo de autocrítica, como o fez, ademais, seu partido – que reconduziu à sua presidência institucional Gleisi Hoffmann, apoiada por Lula e totalmente avessa a qualquer autocrítica. Lula chegou a dizer o seguinte, no festival que celebrou os 40 anos do Partido dos Trabalhadores: “a moda é pedir para o PT fazer autocrítica. A pessoa pergunta para mim: Lula, você não tem autocrítica? É o seguinte, a pessoa que quer que eu faça autocrítica é porque não tem crítica a fazer a mim”[5]. A coisa chegou num determinado nível, aliás, que recebi de colegas petistas um artigo intitulado: “o país precisa pedir desculpas ao PT antes que seja tarde”[6].

Pois bem, observo muito a política e não existe vácuo que não seja rapidamente ocupado. Foi no vácuo moral do PT que brotou Jair Messias Bolsonaro. O povo, cansado de ter que pagar uma grande carga tributária e de ter que aturar que esse dinheiro vá parar nos bolsos de corruptos e corruptores, decidiu que iria tirar o PT do Poder, nas eleições de 2018. E pouca gente percebeu isso melhor que Bolsonaro – um deputado do baixo clero, com pouquíssima expressão nacional, que tem severas dificuldades de se comunicar com alguma clareza, mas, que não é idiota (assim como Lula nunca foi e nem será idiota).

A direita não existia no país! O simples fato de se postar como alguém de direita, um pouquinho mais desgarrado do centro político, já tornava a pessoa um protótipo fascista. Isso porque o país, depois de viver mergulhado por 21 anos na ditadura militar, tinha certos calafrios com políticos de direita. Assim, esse espectro político inexistia até o primeiro semestre de 2018, quando Bolsonaro arrumou para si um partido nanico que topou tê-lo como candidato a presidente: o PSL. Não só Bolsonaro venceu as eleições como ainda deu ao PSL 3 governadores, 4 senadores e 52 deputados federais.

Veja bem caro leitor, o pêndulo foi puxado para a esquerda por tanto tempo e com tanta força que, quando se soltou foi com tudo para a direita, cumprindo a 3ª lei de Newton. E isso se mostrou igualmente pernicioso ao país, passadas as eleições. Mas, o fato que trago aqui é justamente que Bolsonaro é um fenômeno gestado pelo próprio PT, uma figura que se fez presidente intitulando a si próprio de “anti-PT”. Isso serviu para ganhar as eleições, mas, daí a ser um bom veículo para se governar, vão outros quinhentos…

Gostaria de ter visto alguém mais moderado no Poder, nas eleições de 2018. Alguém como João Amoedo, do Partido Novo. Porque acredito hoje em valores mais liberais. E porque Amoedo segue uma cartilha igualmente social, com transferência de renda aos mais necessitados e dando ênfase ao papel do Estado na educação, saúde e segurança. Mas, não foi possível! E, num segundo turno entre o PT e Bolsonaro, muita gente, como eu, deliberou que valia a pena mudar o curso da história que vinha sendo escrita desde 2002. Não se tratou de um ‘cheque em branco’ – discordo muito do atual Governo, muito mais do que concordo, aliás. E muito menos de ser um ‘bolsominion’, embora haja uma parcela do eleitorado dele que o tem como um ídolo, um santo. Ora, em 2022 Bolsonaro terá um encontro com as urnas e, a depender de mim, desocupará o Palácio do Planalto. Como diria J.R. Guzzo, a democracia só garante que possamos escolher um governante, mas, não garante que ele será um bom administrador e, muito menos, que será honesto.

Apesar de ter apresentado um Governo mediano até o início da pandemia, Bolsonaro foi acertado em cheio por ela. Negacionista de carteirinha, comprou briga com alguns governadores (como os do Rio de Janeiro e de São Paulo) e, principalmente, com a Rede Globo de televisão. Além, é claro, de ter se indisposto com os demais Poderes, quais sejam: o Congresso Nacional e o STF. Isso lhe rendeu apenas prejuízos políticos. E eles se avolumaram de tal forma que começou-se a falar novamente em impeachment. Para dar uma dimensão da derrapada de Bolsonaro na pandemia, das 48 denúncias protocoladas contra ele[7], desde o início do governo, 43 ocorreram no ano de 2020.

Então, depois de derramar sua virulência sobre tudo e todos, Bolsonaro se viu acuado pelas demais instituições democráticas, que sim, existem e estão aí exercendo seu papel. E decidiu ali (talvez convencido pela ala militar de seu Governo), que era hora de sair do corner político e partir de volta para a briga. Tratou então de compor com o chamado ‘Centrão’ – a quem demonizava até ali – garantindo uma base para barrar o impeachment, composta por 206 deputados federais[8]. No mais, adotou uma postura de “Bolsonaro paz e amor” e está há cerca de uma semana sem produzir rupturas ou dar cotoveladas em público – uma espécie de recorde pessoal, seguramente. Está inclusive se aconselhando com Michel Temer[9] (odiado pela população, mas, muito influente no mundo político).

Mais: Bolsonaro viu no meio do cipoal de números ruins das pesquisa de opinião, algo que lhe chamou imediatamente a atenção: o auxílio emergencial (ou ‘coronavoucher’ como nominam alguns) está lhe rendendo um campo novo de apoiadores – aqueles que mais dependem desse benefício – a saber, os menos escolarizados e os mais pobres, conforme extensa análise feita pela Revista Veja, incluindo gráficos[10]. Quer dizer, está tentando manter sua base de apoio (32% aprovam sua gestão, segundo o Datafolha[11]) e expandi-la justamente sobre a parcela de eleitores do PT, que detém outro 1/3 de votos. Se considerarmos que Bolsonaro tem avaliação regular por parte de outros 23% dos eleitores, segundo a mesma pesquisa, ele pode estar dando um belo drible da vaca no seu principal adversário político. Claro, teria que abandonar o liberalismo econômico para isso. Mas, porque não acreditar que Bolsonaro pode se moldar para permanecer no Poder?

Segundo o mesmo Datafolha[12], uma parcela de 50% dos eleitores é contrária à abertura de um processo para afastar o presidente – em abril eram 48%. Nesse período, o índice dos que consideram que ele não deveria renunciar ficou estável, em 50%. Isso denota que sua rejeição parece ter chegado ao piso. E agora ele quer revertê-la exatamente com o bom e velho populismo do PT, assenhorando-se de uma de suas bandeiras, aliás – um programa de renda mínima, que seria uma espécie de ‘coronavoucher’ perenizado. Depois de pagar R$600,00 por três meses a 64,1 milhões de pessoas (de acordo com a Caixa Econômica Federal[13]), o Governo trabalha para prorrogá-lo por mais três. Depois, tenciona torná-lo permanente, com valor ainda a ser definido. Inclusive Paulo Guedes já tem admitido isso em público[14], mostrando que há forte pressão do Planalto nisso.

Resta saber se “Bolsonaro paz e amor” será capaz de ficar no Poder. E ficando, se vai conseguir se reeleger, bem como eleger depois um ‘poste’ seu (ou algum de seus filhos). Está plantando nesse sentido, já que dobrou[15] a transferência de renda durante a pandemia e pretende mantê-la depois – o auxílio emergencial atingia, no fim de abril, em média, 25% da população dos 5.570 municípios brasileiros; em algumas cidades, como Maetinga, a parcela da população que recebe o benefício chega a 90%; antes, somente com o Bolsa Família, a média de beneficiários era de 13,2% nas cidades brasileiras.

A estratégia foi bem montada, do ponto de vista eleitoral. O Governo parece estar fazendo uma limonada com seus próprios limões, no final das contas. Pior para o país, que pode cair numa segunda onda populista. Desejo que isso não se concretize jamais! Não haverá reeleição dele, ao menos não com meu voto. Aliás, reeleições são sempre desastrosas, com raríssimas exceções. O Poder seduz e nele as pessoas se perdem. Não vamos cair, portanto, nessa conversa de ‘paz e amor’. Nem naquela do painho Bolsonaro.

Referências:

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Hippie

[2] https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u33908.shtml

[3] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/2002-lula-vira-paz-e-amor-conquista-o-mercado-e-finalmente-chega-la.shtml

[4] https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/01/19/lula-participa-de-ato-com-intelectuais-em-sp.htm

[5] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/02/08/lula-aniversario-40-anos-pt.htm

[6] https://www.brasil247.com/blog/pais-precisa-pedir-desculpas-ao-pt-antes-que-seja-tarde

[7] https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,conheca-todos-os-pedidos-de-impeachment-contra-bolsonaro,1101544

[8] https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/06/29/bolsonaro-constroi-base-para-barrar-impeachment.ghtml

[9] https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/temer-e-bolsonaro-andam-conversando.html

[10] https://veja.abril.com.br/politica/com-acoes-direcionadas-aos-mais-pobres-bolsonaro-muda-base-de-apoio/

[11] http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2020/06/1988765-bolsonaro-e-reprovado-por-44.shtml

[12] http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2020/05/1988738-48-defendem-renuncia-de-bolsonaro-e-50-sao-contra.shtml

[13] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/06/26/caixaguimaraes-se-governo-prorrogar-auxilio-sera-para-quem-ja-esta-recebendo.htm

[14] https://interior.ne10.uol.com.br/noticias/2020/06/09/brasil-tera-programa-de-renda-minima-permanente-apos-pandemia-189845

[15] https://oglobo.globo.com/economia/com-auxilio-emergencial-numero-de-beneficiarios-de-transferencia-de-renda-dobra-no-pais-24475483

FOTO: https://www.google.com/search?q=paz+e+amor+movimento+hippie&rlz=1C1GCEA_enBR815BR815&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjropiuxqfqAhUySN8KHe_GDugQ_AUoAXoECBEQAw&biw=1366&bih=657#imgrc=BPxXHLrhNsbexM

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado