Conforme consta do site da própria Câmara dos Deputados[1], o chamado Novo Arcabouço Fiscal, seria um “regime fiscal sustentável”, consubstanciado num mecanismo de “controle do endividamento público” que substituiria o “teto de gastos” por um regime ­focado no equilíbrio entre arrecadação e despesas. Mais do que impedir gastos acima de um limite, o regime condicionaria maiores gastos do governo ao cumprimento de metas de resultado primário, buscando conter o endividamento e criando condições para a redução de juros e garantia de crescimento econômico. Pois bem, uma vez aprovado na Câmara e no Senado, o Novo Arcabouço Fiscal entrou em vigor no dia 31/08/2023, por meio da Lei Complementar nº 200/2023[2].

Assim, caiu o teto de gastos. Agora, na prática, o que temos no lugar é um “piso de gastos[3]: isso mesmo, um dispositivo que permite ao governo elevar os gastos de acordo com o crescimento das receitas. Nesse sentido, para 2024 a meta declarada do governo era igualar a receita e a despesa, o que resultaria em um resultado primário de 0% do PIB. Ou seja, o país ficaria “no azul” (arrecadando mais do que gasta).

Acontece que, para a mágica funcionar, é preciso ter concomitantemente um aumento na receita e uma queda (ou não aumento) nas despesas. E, obviamente, o atual governo não tem dedicado uma gota de suor para reduzir despesas (ao contrário, é expansionista). Então, por decorrência lógica, precisa arrumar um modo de aumentar suas receitas, para que o Novo Arcabouço Fiscal não se torne um conto de fadas.

E a conclusão acima externada não é uma análise minha, leiga. Vejamos o que disse a respeito o economista da XP Investientos Tiago Sbardelotto[4]: “entendemos que a nova regra fiscal explicitou a opção do governo por um ajuste com foco principal em aumento de receitas”. Não é difícil entender, amigo leitor: como acontece aí na sua casa (no orçamento doméstico), você só consegue sair do vermelho de duas formas – ou gasta menos ou arruma uma forma de ganhar mais (ou ambos, o que seria o melhor cenário).

E, como o atual governo não quer nem ouvir falar de gastar menos, optou por apostar suas fichas numa majoração da arrecadação pública. Sucede que, em se tratando de Estado, só existe uma forma de aumentar a arrecadação: receita tributária. Então, ou a economia vira um colosso da noite para o dia (e o mesmo percentual de tributos, incidindo sobre uma base tributável maior, implicaria num ganho arrecadatório) ou, no mundo das realidades, seria preciso aumentar tributos. Quer dizer, colocar seu bolso para trabalhar na realização dos projetos do atual governo. Em resumo, é precisamente isso o que está acontecendo!

Primeiramente, é necessário dizer que uma reforma tributária é mais que necessária no Brasil. O foco principal seria simplificar a atual selva tributária (com um emaranhado de legislações municipais, estaduais e federais). Basta dizer que o tempo necessário para apurar, declarar e pagar impostos aqui é cerca de dez vezes maior que o de concorrentes da OCDE (do qual nosso país almeja fazer parte), conforme estudo do Banco Mundial[5] – são cerca de 1.501 horas por ano, em média, o que faz do Brasil um case lamentável.

Então, é preciso reconhecer que há significativo avanço na PEC 45/2019, cujo texto-base foi aprovado no dia 07/07/2023, em segundo turno, pela Câmara dos Deputados (e agora está no Senado para análise e votação[6]). É muito positiva a alteração que vai acabar com PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS, que serão extintos e substituídos por dois tributos (IBS e CBS), facilitando a vida das empresas e racionalizando a cobrança de tributos sobre o consumo no país. Sucede que, infelizmente, esse seria o único ganho relevante.

Isso porque a tributação sobre o consumo seguirá sendo brutal, o que mantém um sistema punitivo justamente sobre os mais pobres – a previsão mais otimista é que o IBS e a CBS tenham alíquotas somadas entre 25,5% e 27%[7]. Porém, o mais provável é que essa tributação (IVA) chegue a 28% e seja a maior do mundo, segundo pesquisa do próprio IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)[8]. Para se ter uma ideia, a média entre os países da OCDE é de 19,2%, portanto bem menor do que a projeção brasileira.

Veja, uma tributação justa tem por base o patrimônio e a renda. Mas, aqui, tributa-se o consumo, o que faz com que aquele que é mais pobre pague rigorosamente a mesma quantidade de tributos que o mais rico, dado que os produtos e serviços mais consumidos possuem a mesma carga tributária intrínseca. E isso é especialmente sentido no setor de serviços, que representa uma espécie de motor econômico no Brasil – responsável por 59% dos empregos formais no primeiro semestre de 2023 e que corresponde a quase70% do PIB, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas da Assessoria Técnica da Fecomércio/SP[9] apontam que empresas de serviços tributadas no regime de Lucro Presumido terão um aumento de impostos que pode chegar a 96%. Ao considerar a já elevadíssima carga tributária, atualmente de 33,71% do Produto Interno Bruto (PIB), fica claro que a Reforma Tributária vai prejudicar os empresários de serviços a ponto de colocar em dúvida a sobrevivência dos negócios.

Caro leitor, poderíamos ter uma alíquota menor sobre o consumo caso o peso do Estado brasileiro fosse igualmente reduzido. Quer dizer, não há como se fazer um ajuste fiscal decente sem atacar o lado dos gastos públicos. Fizesse o governo uma reforma administrativa, poderia economizar até R$400 bilhões em 10 anos[10]. Assim, pretender arrumar as contas públicas apenas pelo viés do aumento de receita é uma miragem!

Tanto isso é verdade que o próprio Lula disse no dia 27/10/2023, última sexta-feira, que o governo não deve conseguir cumprir a meta de zerar o déficit primário das contas públicas em 2024[11]. Quer dizer, está sendo reconhecido o óbvio: não haverá ajuste fiscal algum enquanto o Estado brasileiro for expansionista – artigo no qual o atual governo é campeão, aliás (basta dizer que, mesmo antes de tomar posse, o atual governo sugeriu uma PEC que lhe daria uma “licença para gastar” da ordem de R$200 bilhões em 2023[12]).

Apesar da intenção do governo, o Brasil deve ter déficit de 1% do PIB em 2024, conforme projeta Barclays[13]. E o desarranjo das contas públicas, que começou em 2014, durante a gestão de Dilma Rousseff, perdurou por longos 08 anos, só sendo interrompida em 2022, quando foi registrado superávit[14]. Sucede que, agora, no ano de 2023, o déficit esperado pelo governo federal passa dos R$140 bilhões até o final do ano – o déficit primário já ultrapassou os R$105 bilhões entre janeiro e agosto[15] – uma lástima!

O fato é o seguinte, gostemos ou não (até porque é um fenômeno já experimentado mundialmente – e o exemplo mais próximo é a nossa vizinha Argentina): o descontrole fiscal leva ao aumento da dívida pública, resulta em juro alto e inflação. Quem paga essa conta é sempre o cidadão, especialmente o mais pobre, afinal, o seu pouco poder de compra é corroído pela inflação. Além disso, a alta dos juros tem efeito negativo no crescimento econômico e, portanto, na geração de emprego. É um moto-contínuo do mal.

Assim, enquanto não cairmos na real e passarmos a exigir dos nossos governantes o respeito básico às mais comezinhas regras macroeconômicas, estaremos fadados a dar voos de galinha ou, pior, a andar para trás. Aliás, a partir de um determinado ponto a queda se dá em progressão geométrica e abre-se um alçapão no fundo do poço. Daí, amigo leitor, te digo de coração: você até pode ficar encantado com o samba-enredo entoado pelo Ministro da Fazenda Fernando Haddad (cuja foto-meme[16] com um violão nos braços, durante entrevista à Globo News, correu a internet). Entretanto, o barco começou a fazer água e, caso nada de substancial se altere, corremos o risco de ficar tocando violino enquanto o Titanic ruma para o fundo do mar (cena clássica do filme de James Cameron). É preciso acordar e com urgência!

Referências:

[1] https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/novo-arcabouco-fiscal/index.html

[2] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/08/31/novo-arcabouco-fiscal-entra-em-vigencia-no-brasil

[3] https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/03/31/arcabouco-fiscal-economistas-destacam-pontos-positivos-e-negativos-da-proposta.ghtml

[4] https://einvestidor.estadao.com.br/mercado/arcabouco-fiscal-opiniao-analistas/

[5] https://brasil61.com/n/empresas-brasileiras-gastam-quase-dez-vezes-mais-tempo-com-impostos-que-concorrentes-pind233937#:~:text=Segundo%20o%20estudo%20Doing%20Business,cerca%20de%2020%25%20desse%20tempo.

[6] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/10/25/relatorio-da-reforma-tributaria-preve-trava-para-aumento-de-imposto

[7] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/08/09/ibs-e-cbs-devem-ter-aliquotas-somadas-entre-2545-e-27.ghtml

[8] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/07/iva-do-brasil-pode-ir-a-28-e-ser-o-maior-do-mundo-segundo-pesquisa-do-ipea.shtml#:~:text=IVA%20do%20Brasil%20pode%20ir,mundo%2C%20segundo%20pesquisa%20do%20Ipea

[9] https://www.fecomercio.com.br/noticia/tributaria-setor-de-servicos-vai-pagar-mais-impostos

[10] https://www.idv.org.br/noticia/reforma-administrativa-vai-economizar-r-400-bilhoes-ate-2034-diz-estudo/

[11] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/lula-diz-que-governo-nao-deve-cumprir-meta-de-zerar-deficit-em-2024/

[12] https://www.infomoney.com.br/politica/licenca-para-gastar-de-lula-pode-superar-r-200-bilhoes-com-pec-sugerida-por-alckmin/

[13] https://www.infomoney.com.br/economia/apesar-de-intencao-do-governo-brasil-deve-ter-deficit-de-1-do-pib-em-2024-projeta-barclays/#

[14] https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/01/27/apos-8-anos-no-vermelho-contas-do-governo-tem-superavit-de-r-54-bilhoes-em-2022-diz-tesouro.ghtml

[15] https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/10/02/rombo-de-r-100-bilhoes-quais-os-impactos-do-pior-resultado-das-contas-publicas-desde-a-pandemia.ghtml

[16] https://oglobo.globo.com/economia/alvaro-gribel/coluna/2023/07/em-boa-fase-haddad-supera-mais-um-desafio-tocar-violao-em-uma-cadeira-com-braco.ghtml

FOTO: https://jornalng.net.br/noticias/entenda-o-que-muda-com-o-arcabouco-fiscal/

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado