É duro acordar e se deparar, diariamente, com o ‘universo invertido’ – aquela sensação de que as coisas estão fora do lugar. Mais que isso: de que estão exatamente ao contrário de onde deveriam.

Assim é a sensação de viver no mundo hoje. Para quem é brasileiro então, é quase um multiverso do atraso – onde as esferas das piores possibilidades paralelas se tocam. É uma distopia infinita!

Veja: basta dizer que temos hoje na Presidência da República uma pessoa que foi envolvida em uma trama de esquemas sucessivos – mensalão e petrolão. Lembre-se que houve condenação em 1ª Instância, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, bem como no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Tudo isso à unanimidade, frise-se – 1 juiz, depois, 3 desembargadores e, por fim, 5 ministros. Havia depoimento de diversas testemunhas, projetos de reforma, fotos e, claro, a palavra de 2 empreiteiros (Léo Pinheiro e Marcelo Odebrecht), com riqueza de detalhes, mais a palavra do braço-direito financeiro de Lula à época (Antônio Palocci). Porém, ao aportar no STF, o caso teve uma guinada e acabou anulado – não porque “inexistiam provas”, como diz a militância, nem porque o juiz de 1ª Instância (Sérgio Moro) fora parcial, mas, porque o STF (voltando atrás naquilo que havia dito por quase 5 anos sucessivos), entendeu que a competência para o início da Ação Penal não seria de Curitiba/PR, mas do Distrito Federal. Ou seja, o processo foi anulado por uma questão de competência relativa (como se diz, tecnicamente, em Direito Penal). Dali em diante, tudo foi derrubado, ao ponto de se ‘liberar’ completamente Sérgio Cabral (que confessou tudo, em dezenas de audiências, todas filmadas) e até Alberto Youssef (o doleiro que primeiro delatou tudo).

Lula venceu porque o antecessor, Jair Bolsonaro, aparentemente tentou um golpe para permanecer no Poder – articulou com os 3 líderes das Forças Armadas para “virar a mesa” (nas palavras de Augusto Heleno), apresentando-lhes uma minuta de instauração da “lei e da ordem”. Por sorte, há registro de que apenas um dos líderes aceitou seguir com a ideia estapafúrdia. Os outros dois se opuseram. Isso, aliado a sofrível falta de empatia e liderança durante a pandemia, tirou de Bolsonaro o cargo. E, agora, julgado no mesmo STF, irá tirar-lhe a liberdade, por um longo tempo. Há algumas filigranas jurídicas discutíveis, como competência, soma de penas, impedimento e/ou suspeição dos julgadores etc. Como, de resto, ocorreu no caso de Lula na Lava Jato. Mas, há muitas provas a incriminar Bolsonaro, como constou do julgamento (por 4×1) no STF. Isso é um fato.

Ora, fosse este um país sério, com instituições operantes, ambos estariam jogando dominó na mesma cela. E nós, os brasileiros e a nação, seguiríamos nossos caminhos. Mas não: quis Deus que ficássemos encalacrados nessa ‘polarização’ idiota entre Lula e Bolsonaro. E é apenas sobre isso que se fala, dia e noite, na imprensa, nos bares, nos encontros em família e até nas igrejas… Qualquer assunto que surja, por mais desimportante que seja, já se formam 2 pelotões: os que são contra e os que são a favor. Se Lula disser que aprova, os bolsonaristas são contra (e vice-versa). Coerência? Nenhuma! Basta dizer que os antigos ‘patriotas’ hoje apoiam tarifas americanas e os petistas hoje lotam as ruas para protestar contra os políticos ‘bandidos’ e ‘ladrões’. É surreal!

Cortemos para uma visão mais global, olhando menos para nosso umbigo, e veremos que o mundo está se tornando cada vez mais perigoso. Tivemos 2 guerras mundiais (‘quentes’, no seio da Europa), seguidas por uma guerra ‘fria’ entre Estados Unidos e União Soviética. Aliás, recomendo muito o documentário “Ponto de Virada: a Bomba e a Guerra Fria” do Netflix[1]. Ali se explica muito dos problemas atuais, derivados do antagonismo entre capitalismo e comunismo, a atuação e ingerência de agências de inteligência em outros governos e nações, a expansão imperialista, guerras regionais por procuração, bombas atômicas e seu risco à humanidade etc. Mas, o que mais chama a atenção no documentário é: como surgem e se arvoram no Poder os populistas, que ato contínuo se tornam tiranos. Não é algo do dia para a noite. Há que se ter uma ambiência propícia, como aquela que se observa hoje, mundo afora. Nenhuma nação está a salvo, nem mesmo os EUA.

Hoje, por coincidência, li uma análise na CNN International[2], que me trouxe um conhecimento novo – você já ouviu falar na aliança de países conhecida como CRINK? Trata-se do alinhamento dos seguintes países: China, Rússia, Irã e Coréia do Norte. Conforme nos ensina a matéria, a Rússia reativou seu imperialismo na Europa, invadindo a Ucrânia. O Irã fornece mísseis e drones para os ataques, burlando as sanções internacionais (por procurar fabricar bombas atômicas e ICBMs), financiando-se. A Coréia do Norte fornece todo tipo de material bélico, inclusive dezenas de milhares de soldados (isso mesmo!), também burlando as sanções internacionais (por seguir fabricando bombas atômicas e ICBMs), financiando-se. Enquanto isso a China vende a todos esses países tudo aquilo que precisam, inclusive equipamento com dupla finalidade (civil e militar), ao passo em que compra deles petróleo, gás e outros materiais e commodities cruciais. A ideia é que cada um se apoia e todos saem no lucro, independentemente do fato de isso ser banhado a sangue.

A Rússia quer invadir e conquistar a Ucrânia? Bem, isso não é um problema chinês. O Irã quer se tornar uma potência nuclear, financiar terroristas no Oriente Médio e varrer Israel do mapa? Isso também não compete ao bedelho russo ou chinês. A China se preparar para invadir e conquistar Taiwan? Isso não é da alçada russa. E a Coréia do Norte só que viver em paz, na sua própria tirania.

Enfim, não existe uma nova guerra ‘fria’ entre EUA e China como apontam alguns. O que há hoje é um pool de potências nucleares que se tornaram ‘neoimperialistas’. É tanto que o próprio EUA voltou a adotar a política do porrete, de cem anos atrás, inclusive estacionando uma armada nas barbas da Venezuela (que é uma ditatura, mas, ainda assim, um país soberano). Trump mandou às favas o apoio aos ucranianos. Além do que, deixou claro à Europa que ela deve ‘se virar’ para se rearmar (comprando armamento americano, de preferência) – o que basicamente esvazia a OTAN.

Em suma, estamos comemorando 80 anos do final da 2ª Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que assistimos ao desmantelamento dos organismos multilaterais (p.ex. a ONU) e ao recrudescimento das potências imperialistas, alinhadas por interesses nacionais e guiadas por políticas populistas. Tudo isso em concomitância com o fim de qualquer acordo nuclear entre as potências bélicas. Ou seja, o mundo virou uma espécie de faroeste com balas de urânio e plutônio – o livro Apocalipse.

O Brasil poderia seguir sua diplomacia secular de neutralidade, colhendo seus frutos econômicos e atuando ‘abaixo da linha dos radares’ das grandes potências nucleares. Mas, está tomando partido claro, alinhando-se ao CRINK – que é um tipo de aliança militar, embora disfarçada (assim como já faz parte do BRICS 10 – que era uma aliança econômica, agora desvirtuada em várias tiranias).

Enfim, não há um minuto de paz! Não há quem olhe para os problemas com intenção de resolvê-los. É um amontoado de populismo e polarização. Um vazio de proposições e ideias. Basta dizer que no Brasil (e talvez no mundo) não existem mais forças de ‘centro’. Estão morrendo, uma a uma, as últimas democracias liberais no planeta. E, lentamente, caminhamos ladeira abaixo.

Outro dia eu disse a um amigo: nossa geração fracassou! Simplesmente não há políticos da nossa idade (ao menos políticos proeminentes) – ou são mais velhos ou mais novos. O que vamos legar aos nossos filhos? Herdamos um mundo de paz (forjado após a queda do muro de Berlim) e vamos deixar um mundo de caos e ódio, onde manda a lei do mais esperto ou do mais forte? Infelizmente, não vejo muita luz no fim do túnel, amigo leitor. Me sinto vivendo no ‘universo invertido’.

Referências:

[1] https://www.netflix.com/br/title/81614129

[2] https://edition.cnn.com/2025/09/23/politics/unga-2026-pivotal-year-mcgurk-analysis

FOTO: https://edition.cnn.com/2025/09/23/politics/unga-2026-pivotal-year-mcgurk-analysis

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado