Algumas coisas precisam ficar claras. Primeiramente, é preciso fixar que este que vos escreve acredita piamente que não há democracia sem imprensa livre. Em segundo lugar, àqueles que discordam dessa máxima, convém anotar que no Brasil, ao menos com a Constituição Federal vigente, desde 1988, há plena liberdade de manifestação do pensamento, o que implica numa imprensa livre como cláusula pétrea, imutável, fundante do nosso Estado de Direito. Então, não adianta se animar com qualquer tipo de censura!

Feitas essas considerações, uma outra premissa se faz necessária: não escrevo aqui para defender Sérgio Moro ou Deltan Dallagnol, nem mesmo para aclamar a Operação Lava Jato. Bem como não escrevo para agradar à ‘esquerda’ ou ‘direita’, muito menos ao ‘centro’. Escrevo como mero jurista, tentando analisar os fatos abaixo com a maior objetividade possível, segundo a legislação vigente no país. Anote-se, ainda, que como advogado criminalista que sou, defendo a maior amplitude possível ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988, até porque ali estão direitos que defendem você, leitor, e qualquer outro cidadão da República, inclusive os estrangeiros residentes no país, das arbitrariedades do Estado. Então convém se entrincheirar na defesas desses direitos.

Acredito que todos saibam quem é Glenn Greenwald. Em todo caso, para algum leitor que seja mais desavisado, vejamos o que consta sobre ele na Wikipédia[1]: Glenn Edward Greenwald é um escritor, advogado especialista em direito constitucional dos Estados Unidos e jornalista norte-americano, radicado no Rio de Janeiro desde 2005. Greenwald é casado há mais de 14 anos com o brasileiro David Miranda, filiado ao PSOL, que em 2019 passou a ocupar a vaga do deputado federal eleito Jean Wyllys (que decidiu não assumir o mandato no início daquele ano e deixou o país alegando ameaças de morte).

Foi Glenn Greenwald quem, em parceria com Edward Snowden, levou à público a existência dos programas secretos de vigilância global dos Estados Unidos, efetuados pela sua Agência de Segurança Nacional (NSA). Ele inclusive ganhou o Prêmio Pulitzer de jornalismo em 2014 em razão disso. Em junho de 2019, o periódico virtual The Intercept (que ele fundou em 2013 com Laura Poitras e Jeremy Scahill) publicou matéria com vazamento, de fonte “anônima”, de conversas no aplicativo Telegram entre o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol no âmbito da Lava Jato. O material conteria conversas altamente controversas, supostamente ilegais e/ou politizadas.

A divulgação desse material implicou em uma desavença enorme entre lavajatistas e críticos da operação, bem como acirrou ainda mais a disputa entre direita e esquerda. Não escrevo para tratar dessa disputa. Também não me atenho ao mérito das conversas em si. Escrevo apenas para abordar a forma como se sucederam os fatos relativos ao vazamento.

Após investigações realizadas pela Polícia Federal, chegou-se ao nome de Walter Delgatti Neto, o “Vermelho”, como sendo o hacker responsável pela obtenção do material contido no aplicativo Telegram de diversas autoridades da República, dentre elas Sérgio Moro e Deltan Dallagnol (além de outras 1.000 pessoas, incluindo o presidente Jair Bolsonaro). Segundo a Revista Veja[2], Vermelho, que foi preso na Operação Spoofing, responde a ações por estelionato, furto qualificado, apropriação indébita e tráfico de drogas.

Com as prisões dos hackers, e ainda no curso das investigações, chegou-se à informação de que Vermelho entrou em contato com a candidata a vice-Presidente (na Chapa de Fernando Haddad do PT) Manuela D’Ávila (do PCdoB), que confirmou[3] que passou o contato do jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept Brasil, a alguém que dizia ter “obtido provas de graves atos ilícitos praticados por autoridades brasileiras”. Vermelho também afirmou ter chegado a Glenn Greenwald através de Manuela D’Ávila.

Pois bem, ultimadas as investigações da Polícia Federal, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra 7 pessoas, dentre elas Vermelho e Glenn Greenwald. Segundo o MPF todos teriam praticado os crimes previstos: no artigo 154-A, §3º do Código Penal (invasão de dispositivo informático), artigo 2º da Lei nº 12.850/2013 (integrar organização criminosa) e artigo 10 da Lei nº 9.296/1996 (interceptação ilegal de comunicações telefônicas, de informática ou telemática).

Como se sabe, o juiz do caso deixou de receber a denúncia em desfavor de Gleen Greenwald, uma vez que há liminar deferida pelo Ministro Gilmar Mendes, do STF, na ADPF nº 601 (24/08/2019), impedindo qualquer investigação contra o jornalista, em razão da “liberdade de expressão e de imprensa”, bem como da “proteção do sigilo da fonte jornalística”, previstos no artigo 5º, XIV, e 220 da Constituição Federal de 1988. Assim, a rigor, hoje o recebimento ou não da denúncia criminal em face de Gleen Greenwald depende do STF, como ressaltou o juiz do caso.

Ocorre que, o que chama a atenção, é aquilo que disse o juiz federal, em decisão proferida nos autos daquele inquérito policial. Vejamos alguns trechos[4]: 1) “verifico, pela análise do material apreendido – antes do deferimento liminar pela Excelsa Corte que paralisou as investigações em desfavor de Gleen -, que o repasse do material obtido do aplicativo Telegram, do então Juiz Federal Sergio Moro e dos Procuradores da República integrantes da operação lavajato ao jornalista Glenn Greenwald, não foi feito de uma única vez e continuou ocorrendo mesmo já iniciada a divulgação na mídia das matérias do conteúdo hackeado. Ou seja, houve mais de um contato entre o jornalista e os hackers e por mais de uma ocasião foi-lhe repassado conteúdo ilícito das autoridades públicas”; 2) “As provas colhidas pela Polícia Federal expuseram um diálogo travado entre Glenn Greenwald e Luiz Molição, na data de 07/06/2019, em que (…) Glenn Greenwald orienta Luiz Molição a se desfazer das mensagens que estavam armazenadas para evitar ligação dos autores com os conteúdos ‘hackeados’”; 3) “A ciência jurídica já delimitou em vários campos a noção do abuso do direito. Neste caso, a instigação de desfazimento de mensagens afronta o trabalho investigativo e desborda da proteção de sigilo a fonte, que é limitado apenas para a necessidade do exercício da função jornalística (…). Ao tratar com sua fonte sobre a publicação de mensagem de conteúdo ilícito, o jornalista possui um roteiro rígido a ser seguido. Tanto que Glenn Greenwald é cauteloso em outras circunstâncias, como a de não apontar alvos para o monitoramento. Além disto, menciona no diálogo com Luiz Molição que, se alguém tentasse vinculá-lo ao hackeamento que estaria ocorrendo com membros do MBL e o apresentador Danilo Gentilli, iria deixar claro que recebeu o material antes e de uma única vez, possivelmente porque sabe que o repasse de forma contínua e concomitante aos ataques acarretaria sua responsabilidade penal. Pensar de outro modo estimularia a interação/cumplicidade de autores de ataques cibernéticos com jornalistas de forma contínua e ininterrupta, além de premiar comunicadores sociais que obtém projeção social com este comportamento”.

Pois bem, caro leitor, não sei se o que disse o juiz está ou não ancorado em provas dos autos. Também não sei se há, de fato, alguma ligação espúria entre Glenn Greenwald e os hackers que lhe repassaram o material divulgado pelo site The Intercept. Isso seria justamente o objeto do processo criminal derivado do referido inquérito. Mas, somente após o aval do STF é que o caso poderá, eventualmente, tramitar em face de Glenn.

O único comentário que gostaria de fazer, nesta coluna, é que, ao que tudo indica, Gleen sabia que o material que estava recebendo era produto de um ‘hackeamento’. Mais: que quem lhe repassava o material eram os próprios hackers. Então, mesmo que não tenha cometido crime algum, ao menos é imoral a conduta do referido jornalista. Talvez seja até ilegal, se considerado o ordenamento jurídico como um sistema harmônico. E isso porque também assegura a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XII, que é inviolável o sigilo das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas. Sendo certo que esse sigilo só pode ser afastado por ordem judicial. Então, toda ação de hackers é ilegal e inconstitucional. E não me parece razoável que qualquer jornalista invoque o “sigilo da fonte” como uma excludente absoluta, quando sabe que o material que está divulgando foi fruto de um ilícito, mais ainda se o recebeu diretamente do próprio hacker. Não se trata de uma conduta lisa, escorreita. Não adianta espernear.

Assim, a enxurrada de críticas que se viu nos noticiários do país, veiculados por jornalistas, juristas, políticos e outras personalidades, que vieram à público defender o “direito constitucional à liberdade de imprensa”, bem como o direito de Glenn de “exercer sua profissão” no país, não me parecem ancoradas nos fatos investigados – apenas isso!

Os jornalistas invocam os artigos 5º e 11 do seu Código de Ética, que asseguram o “sigilo da fonte” e também dizem que “o jornalista não pode divulgar informações: (…) obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração”. Sucede que este Código não é lei… E invocar o “interesse público” para afastar o sigilo constitucional de conversas entre as pessoas é um disparate completo. Ora, o sigilo é um direito individual de todo cidadão, uma cláusula pétrea. Somente o juiz togado pode afastá-lo. Pode até parecer bacana a ideia de que hackear autoridades e expô-las daria ao “povo” maior controle de seus atos, numa espécie de revolução dos oprimidos. Porém, esse direito consagrado visa justamente defender o povo, aí incluídos eu e você, de devassas do próprio Estado e também de terceiros, como hackers. E é por isso que tal conduta é um crime tipificado!

Assim, temos que defender ferrenhamente a liberdade de imprensa, como já anotado. Mas, essa liberdade não pode se sobrepor, de modo absoluto, como querem os jornalistas, às demais liberdades, por exemplo ao direito de sigilo das comunicações entre pessoas. Caso contrário, estaríamos autorizando, como bem frisou o juiz daquele inquérito, a “interação/cumplicidade de autores de ataques cibernéticos com jornalistas de forma contínua e ininterrupta”. E não se pode jamais conceber a ideia de que um jornalista possa ter uma rede de “fontes anônimas” que se prestam a hackear a tudo e a todos. Aliás, não raro vemos documentos de processos sigilosos serem vazados na imprensa como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. Não é! Tal conduta é apenas um crime

Enfim, os jornalistas podem quase tudo. Mas não podem tudo. Faz parte da vida! E não é preciso ser um “nazista” ou um “comunista” para dizer isso. Basta estar do lado da lei.

Referências:

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Glenn_Greenwald

[2] https://veja.abril.com.br/politica/quem-e-vermelho-estelionatario-fanfarrao-e-suspeito-de-hackear-moro/

[3] https://veja.abril.com.br/brasil/manuela-davila-confirma-que-passou-contato-de-glenn-greenwald-a-hacker/

[4] https://www.conjur.com.br/dl/juiz-rejeita-denuncia-glenn.pdf

FOTO: https://www.google.com/search?q=glenn+greenwald&rlz=1C1GCEA_enBR815BR815&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=4vMx2CayIVjVwM%253A%252Cj_21A_gXrBRv_M%252C%252Fm%252F0clb0v&vet=1&usg=AI4_-kRTM-5dYJd00Io1uwmZXsLO-aMfiQ&sa=X&ved=2ahUKEwj6vuudyePnAhXMJt8KHQnoCiIQ_B0wKXoECAYQAw#imgrc=4vMx2CayIVjVwM

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado