Quando Montesquieu desenvolveu sua teoria da separação dos poderes, seguramente não tinha em mente aquilo que vemos em curso no Brasil. Em verdade, esta teoria, adotada pela maioria dos Estados ocidentais modernos, afirma a distinção dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), delineia suas atividades típicas e atípicas, e determina suas limitações mútuas. Os poderes, assim, seriam independentes e harmônicos entre si, cada qual servindo de contrapeso aos arroubos dos outros dois.
Desta maneira, numa República, o Legislativo (Parlamento) agiria para limitar o poder do Executivo (Governo): que não ficaria totalmente livre para agir e ainda deveria (constantemente) garantir o apoio do Parlamento, que é a expressão da vontade do povo. Da mesma forma, o Poder Judiciário permitiria fazer um contrapeso a certas decisões governamentais. Objetiva-se, com tudo isso, evitar que o poder se concentre nas mãos de uma única pessoa, para que não haja abuso, como aquele ocorrido no Estado Absolutista, por exemplo, em que todo o poder concentra-se na mão de um “rei”.
No Brasil, cada um desses Poderes tem sua atividade principal e outras secundárias. Por exemplo, ao Legislativo cabe, principalmente, a função de produzir leis e fiscalizá-las, e administrar e julgar em segundo plano. Ao Judiciário cabe a função de dizer o direito ao caso concreto, pacificando a sociedade, em face da resolução dos conflitos, sendo, suas funções atípicas as de administrar e legislar. Ao Executivo cabe a atividade administrativa do Estado, é dizer, a implementação daquilo que determina a lei, atendendo às necessidades da população, como infraestrutura, saúde, educação, segurança pública etc. Sendo suas funções secundárias as de legislar e julgar.
Porém, no país tupiniquim, as inversões e o desbordamento dessas funções basicamente inviabilizaram o sistema tripartite, que remonta à Grécia Antiga. E isso porque o Executivo se tornou um “refém” do Legislativo. As pessoas vão às urnas e elegem o Presidente acreditando que é um salvador da pátria, um Sassá Mutema… Quer dizer, que tudo aquilo que disse durante a campanha ele vai conseguir colocar em prática no dia seguinte à sua posse. Mas, se esquecem do fato de que nada daquilo vai virar realidade se não houver aprovação por parte do Parlamento, seja mediante lei (ordinária ou complementar) ou mesmo via emenda constitucional. E nossa danação está justamente no fato de que, em virtude disso, as pessoas votam muito mal na hora de compor o Legislativo. As pessoas sequer se lembram em quem votaram para o Parlamento!!
Assim é que, desde a redemocratização, sob a vigência da Constituição Federal de 1988, os sucessivos Governos tiveram toda sorte de problemas para implementar suas políticas. E isso porque: ou estavam rompidos com o Legislativo e acabaram caindo via impeachment, casos de Color e Dilma (e, talvez, de Bolsonaro, num futuro breve), ou fizeram do Legislativo seu anexo, via troca de cargos, favores e verbas (e corrupção, em alguns casos comprovados), casos de FHC e Lula. Em suma, o Legislativo nunca foi muito republicano no nosso país. Seja porque legisla em causa própria, ou porque não legisla em razão das reais necessidades das pessoas (da sociedade), ou porque deixa de legislar, quando cooptado pelo Executivo, bastando-se em chancelar as medidas provisórias que lhe são enviadas aos borbotões. Aliás, quando o Governo funciona ele é ancorado nesse sistema em que o Executivo legisla e o Parlamento apenas chancela.
E foi justamente porque o Executivo cooptou o Legislativo por longos anos, durante os mandatos de FHC e Lula, que nossa produção legislativa deixou a desejar. E dali nasceu um monstro, que tem nos devorado aos poucos: o ativismo do Poder Judiciário. São inúmeros os casos e exemplos de decisões judiciais que simplesmente desconsideram aquilo que está na legislação. Entortam seu sentido. Quando não se propõem a inventar, criar do zero, uma norma para o caso concreto. Entramos assim num perigoso campo subjetivo em que temos milhares de pequenos reis pelo território nacional. E, pior, o STF – a quem cabia justamente trazer alguma segurança jurídica, pacificando a sociedade – tem se tornado um manancial de conflitos, engendrados em suas longas e confusas decisões, tomadas mais no campo da política que na seara jurídica em si.
Neste caleidoscópio sem lógica, ao qual estamos submetidos, somente uma profunda reforma política (aí inclusa a alteração no sistema de governo e também na composição de nossos tribunais superiores) poderia nos tirar do paleolítico governamental. Vejamos.
Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que não existirá futuro que preste enquanto o ocupante do cargo público não tiver certeza de que o ocupa temporariamente. Assim é que o maior desserviço à Constituição Federal foi feito no Governo FHC e chama-se “reeleição”. Essa praga faz com que Prefeitos, Governadores e Presidentes governem mais pelo afã de no cargo permanecerem que em prol de população. Não há variantes. Somente o fim da reeleição para o Executivo já nos tiraria um belo fardo das costas, acreditem! Mas, se quisermos avançar bem mais, seria preciso ainda proibir reeleições para o Legislativo, ou ao menos restringi-la a uma única reeleição para o Parlamento, em todos os níveis (municipal, estadual e federal). Eliminaria o glorioso “coronelismo”.
Enfim, essa mudança, o fim da reeleição, viabilizaria algumas coisas importantes: se o sujeito for bandido, não vai roubar para sempre. Se for incompetente, terá data para sair. E se for bem intencionado e virtuoso, terá podido contribuir por um período, cedendo espaço a outros, em seguida, já que não existe democracia sem “alternância de Poder” – outra verdade inexorável, mas que precisa ser repetida, por excesso de zelo.
O Judiciário continuaria com seus cargos de magistrado (em 1ª Instância) providos por concursos de provas e títulos, mas, exigindo um tempo mínimo de prática jurídica maior que os atuais 3 anos, porque é preciso que sejam mais experientes e que tenham mais sabedoria de vida, o que só o tempo é capaz de proporcionar aos cidadãos. Dali, por mérito e antiguidade, poderiam compor os Tribunais (em 2ª Instância). Já as indicações para o STJ deveriam seguir votações da própria carreira, uma vez que àquele tribunal compete justamente uniformizar a jurisprudência. E, dentre os 33 membros deste último, deveria existir votação interna para indicação ao cargo de Ministro do STF, mediante aprovação do Parlamento. Nada mais de indicações “políticas”, com seus favores subjacentes. E nada mais de vitaliciamento no STJ e no STF: ninguém pode achar que é Deus, então, haveria mandatos de 10 anos, por exemplo. Enfim, um tempo que permita estabilidade jurisprudencial e, ao mesmo tempo, uma progressão de entendimento na interpretação das leis, evitando a falta de oxigenação da Justiça.
Competiria ainda acabar com esse sistema do Presidencialistmo de ‘coalisão’, verdadeiro me engana que eu gosto, já que só existe na prática o Presidencialismo de ‘cooptação’. Aí entra o Parlamentarismo! Ora, se o Executivo depende, em tudo, de autorização do Parlamento, por qual razão manter uma eleição em apartado? Muito mais lógico que, eleitos os representantes do povo, tais Parlamentares cuidassem de constituir dentre eles o gabinete de Governo, que indicaria ministros e representaria a Nação externamente. Havendo maioria para indicar Governo, haveria igualmente para que este tocasse seus projetos, aprovando-os. Não havendo mais maioria, formam-se novos arranjos, sem a necessidade de um longo e sofrível processo de impeachment, que parece ser o novo normal no Brasil. Já estão propagando aos quatro ventos que é isso o que aguarda o Presidente Bolsonaro, tão logo passemos pela pandemia de coronavírus.
Parece um contrassenso dar mais poderes àquele que pode ser o mais problemático dos Poderes da República (o Legislativo), correto? Mas, tal paradoxo é aparente. Explico.
Somente sairemos do buraco, do terceiro mundismo, quando aprendermos a votar e eleger políticos melhores para o Legislativo. E acabar com a figura do Presidente permite acabar com os salvadores da pátria, os messias, os mitos, os pais dos pobres etc. O foco então muda para os legisladores e seus partidos. Isso porque, para funcionar, só haveria sucesso com uma cláusula de barreira eficaz, que eliminasse a sopa de letrinhas que compõe atualmente o Congresso Nacional. Os partidos políticos precisam ser valorizados, mediante garantia de fidelidade partidária. As pessoas são diferentes, é claro, mas, precisam se agremiar em torno de ideias parecidas, de algum conteúdo programático. Não faz sentido fazer política sozinho, daí a ineficácia de candidaturas avulsas. Os políticos precisam representar bandeiras e não apenas agir com o “coração”, facilitando lobos em pele de cordeiro, que agem conforme a música para enganar você, cidadão e eleitor. Políticos precisam ter lado, opinião formada e serem transparentes quanto a isso, já que se propõem representantes do povo. Ora, como podem representar alguém se sequer se sabe o que tais políticos defendem? Os partidos existem pra isso!
E a composição do Parlamento, para além dos Senadores, eleitos por votação majoritária, representantes dos Estados Federados, seria feita por eleição proporcional para a Câmara, como é feito hoje. Isso não é um defeito, porque parte da ideia de que ao votar, o sujeito escolhe primeiro um partido e, em seguida, um de seus candidatos. Está corretíssimo, aliás. As distorções se corrigem com a criação de distritos eleitorais, evitando que um único político leve consigo outra dezena, com votações inexpressivas.
Quer dizer, o voto distrital corrige o sistema proporcional, que é bom. E ainda agrega a vantagem de aproximar o eleito de seus eleitores. Facilita que o eleito saiba para quem governa, qual região representa. E torna mais possível que os eleitores fiscalizem seu eleito, verificando se atende aos problemas locais e aos anseios partidários que endossaram nas urnas. E poderíamos manter o sistema de lista aberta, permitindo que as pessoas sigam votando no partido e também na pessoa, exatamente como ocorre hoje.
Daria para escrever um tratado sobre as reformas que precisamos fazer para que houvesse algum futuro ao nosso país. Mas, acredito piamente que as principais estão elencadas acima. É quase uma utopia? Sim é! Mas, não pagamos imposto por sonhar…
Referências:
Ricardo Dantas
Advogado
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