Amigo leitor, definitivamente, o ano de 2020 – que agora parece que vai mesmo se acabar sem que dê tempo de acontecer mais alguma desgraça – não foi fácil pra ninguém. Nem para as crianças, restringidas de ir à escola, de brincar na rua, em praças e parques, nem para os adultos em idade média, porque tiveram que lidar com o trabalho e as crianças ao mesmo tempo – aliados à incerteza econômica e ao desemprego (em muitos casos). Para os idosos então, a Covid-19 está sendo algo surreal, afinal, são suas vítimas preferenciais.

É por essas e outras que chega a ser constrangedor quando nos deparamos com uma pessoa negacionista pelo caminho. Não tem cabimento ficarmos discutindo, a esta altura do campeonato, se a doença é ou não uma “gripezinha” e se a vacina “A” ou “B” é pior ou melhor, ou se vamos todos virar jacarés… e coisas desse gênero. Estamos falando de 1.764.872 pessoas que, comprovadamente, morreram da doença no mundo, até hoje. Sendo 191.139 óbitos apenas no Brasil. Então, convém termos mais empatia, pelo menos.

Ocorre que a politização da doença é um fenômeno quase natural. Veja bem, não digo que seja o correto! Mas, seguramente o homem, um ser ontologicamente político, não ia deixar a maior pandemia dos últimos 100 anos confinada no campo exclusivo da saúde. Então, não há problema objetivo em ocorrer uma politização. A questão está na forma que, subjetivamente, alguns exploram essa desgraça global em benefício próprio.

Mais, não precisa sequer ser detentor de votos para fazer uso político da vacina. Vou dar ao leitor três exemplos que, por sua semelhança, indicam o que procuro demonstrar: 1) Promotores de Justiça[1] do Estado de São Paulo pediram para serem incluídos na lista de prioridades da vacinação, dado seu “contato social extremamente grande”; 2) O Superior Tribunal de Justiça (STJ)[2] enviou ofício à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), numa clara tentativa de furar a fila da vacina, de modo a contemplar seus “ministros, servidores e colaboradores” e, ainda, “o quadro de pessoal do Conselho da Justiça Federal”; 3) O Supremo Tribunal Federal (STF)[3] também solicitou doses prioritárias à Fiocruz, em documento enviado à fundação, no qual pediu para “verificar a possibilidade de reserva de doses da vacina contra o novo coronavírus para atender a demanda de 7.000 (sete mil) pessoas”, ou seja, seus ministros, servidores e colaboradores.

Perceba, portanto, que uma boa parte dos detentores de Poder no país – sejam eles do Legislativo, Executivo ou Judiciário – faz uso político da vacina (e, em muitos casos, também da própria pandemia). Em suma, na hora em que o barco faz água existe uma hierarquia a ser seguida. Não vale sequer a lei do ‘salve-se quem puder’. Infelizmente, o povo deve sucumbir para permitir que sobrevivam seus suseranos, uma vez que essa casta possui direito ‘divino’ e, por ser ‘superior’, ficará incumbida de repovoar o mundo…

Parece piada (e de mau gosto), mas não é! É apenas o retrato nu e cru de um país doente há séculos. Conforme a última coluna publicada na Revista Veja por Roberto Pompeu de Toledo[4], as perspectivas de ano-novo são de que, ao contrário do Egito, continuaremos a acumular pragas. Segundo ele, “o Brasil é o país que acabou, mas continua”. Em resumo, temos classes de cidadãos, conforme o cargo que precede o nome de cada um. E o pior é que a pandemia de Covid-19 um dia vai passar, mas, esse pessoal fica. Lamentável!

Pois bem, seguindo na abordagem das vacinas, conforme reportagem da Folha de São Paulo[5], atualmente, 214 vacinas contra Covid-19 estão em desenvolvimento, 52 delas já em fase de estudos clínicos, segundo boletim mais recente da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 08/12/2020. Dessas, 13 chegaram à fase 3 de testes e duas já tiveram as primeiras doses aplicadas na Rússia e no Reino Unido: a Sputnik 5 e a Pfizer/BioNTech – essa também aprovada para ser distribuída nos Estados Unidos. No Brasil, quatro vacinas estão sendo testadas e já estão em fase de negociação: a da AstraZeneca com a Universidade de Oxford, que está sendo desenvolvida em parceria com a Fiocruz; a da Pfizer/BioNTech; a da Janssen-Cilag, do grupo Johnson & Johnson; e a CoronaVac, em parceria com o Instituto Butantan.

Naturalmente, existe uma ansiedade gigante da população para que essas vacinas sejam finalizadas, aprovadas e aplicadas, o quanto antes. Porém, convém lembrar que para que isso ocorra se faz necessária a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Ocorre que, antes da aprovação, precisam terminar os testes e seus resultados, sendo que a empresa fabricante ou importadora da vacina, presente no território brasileiro, deve requerer, perante a referida agência, seu “uso emergencial” ou seu “registro” (definitivo). Porém, nenhuma produtora das quatro vacinas em testes no solo nacional requereu tais registros perante a ANVISA até hoje (28/12/2020)[6]. Não temos vacina sequer em análise registral, quanto mais vacina registrada (mesmo para uso emergencial).

Para se ter uma ideia de como as coisas funcionam, a vacina Pfizer-BioNTech BNT162b2 foi aprovada pelo governo britânico para uso emergencial desde o dia 08/12/2020 no Reino Unido e desde o dia 14/12/2020 nos Estados Unidos[7]. Porém, a vacina que é produzida pelo próprio Reino Unido – desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca – ainda não foi aprovada por lá… A previsão é que tenha seu uso emergencial autorizado a partir do dia 01/01/2021[8]. Enfim, há um trâmite a percorrer quando se está a falar de uma doença ainda em estudos e de vacinas ainda em testes.

Importante anotar que o Brasil possui, atualmente, mais de 300 milhões de doses[9] de vacinas ‘garantidas’ por meio de acordos internacionais e nacionais – vacinas que aguardam apenas o protocolo de registro e respectiva aprovação por parte da ANVISA, como dito. São 302,9 milhões de doses contra a Covid-19 que estão sendo produzidas pela: 1) Fiocruz/AstraZeneca, com 100,4 milhões de doses no primeiro semestre e mais 160 milhões no segundo semestre; e 2) Covax Facility (organismo internacional criado pela OMS para que os países tenham acesso às vacinas produzidas e aprovadas no mundo, quaisquer que sejam), com 42,5 milhões de doses. Além disso o Governo está negociando outras 70 milhões de doses com a Pfizer-BioNTech.

Sucede que a vacina produzida pela AstraZeneca com a Universidade de Oxford, que está sendo desenvolvida em parceria com a Fiocruz, possui enormes vantagens em relação às vacinas que já estão sendo aplicadas no Reino Unido e nos EUA (Pfizer/BioNTech e Moderna), como, por exemplo[10]: o transporte e o armazenamento em temperatura normal de geladeiras (2ºC e 8ºC), enquanto aquelas necessitam de uma temperatura de -70 ºC, e o valor bem mais baixo (cerca de US$ 4,00 por dose).

Já o plano de vacinação do Governo Federal foi divulgado no dia 16/12/2020 e se estrutura da seguinte forma[11]: Fase 1: devem receber a vacina trabalhadores da área de saúde e idosos com mais de 75 anos. Brasileiros acima de 60 anos que vivem em instituições de longa permanência também teriam acesso; Fase 2: idosos de 60 a 74 anos em qualquer situação; Fase 3: indivíduos com condições de saúde que estão relacionadas a casos mais graves de Covid-19; Fase 4: professores, profissionais das forças de segurança e salvamento, funcionários do sistema prisional e a população privada de liberdade. Somente depois é que será vacinado o restante da propulação (em geral), provavelmente no segundo semestre de 2021. Segundo o ministro Eduardo Pazuello a vacinação começará cinco dias após a aprovação pela ANVISA dos produtos atualmente em fase final de testes. É possível que a vacinação se inicie no mês de Fevereiro/2021. Ademais, o plano nacional de imunização finalmente incluiu a CoronaVac, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o (paulista) Instituto Butantan[12].

Aliás, o governador do Estado de São Paulo, João Doria, decidiu marcar o início da vacinação naquela Unidade Federada para 25/01/2021, antes de ter a comprovação da eficácia ou o registro, o que provocou a ira de alguns governadores. Segundo reportagem da Revista Veja[13], na última semana, o grupo de WhatsApp deles pegou fogo quando Ronaldo Caiado (DEM), governador de Goiás, manifestou indignação com Doria, dizendo que ele punha em xeque a credibilidade dos colegas. Também manifestaram desconforto dirigentes de estados vizinhos a São Paulo, que temem um deslocamento em massa da sua população. “Alguns atores políticos querem uma evidência maior, mas vacina é que nem papel-moeda. Não pode ser diferente de um estado para outro”, disse o governador mineiro Romeu Zema (NOVO). De fato, é de extrema importância que a vacinação aconteça simultaneamente, em nível nacional, de acordo com os parâmetros do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde. O Brasil é uma República Federativa e não um Estado Confederado. Quer dizer, somos um único povo!!

Enfim, ilustre leitor, vacine a sua cabeça. Há muitas informações circulando por aí no que se refere à pandemia e, mais recentemente, sobre vacinas. Sugiro que leia várias fontes diferentes, antes de formar suas opiniões. Não vá caindo no comportamento de manada. Há alguns fatos que emergem inexoráveis: Bolsonaro é um negacionista, João Dória é um oportunista, STJ e STF são instituições descaradas e a ANVISA não está atrasada.

Por fim, deixo uma opinião sobre vacinação: é óbvio que quanto antes iniciarmos a vacinação melhor, afinal, perdemos centenas de vidas todos os dias no nosso país. Mas, a imunização da população é uma corrida de fundo e não uma corrida curta. Importante não é quem larga na frente, mas, quem chega primeiro. Até poderíamos estar mais adiantados, entretanto, não estamos atrasados. A vacina carro-chefe por aqui viabilizará uma imunização continental, utilizando refrigeradores comuns e a um custo mais baixo (lembrando que somos a 5ª maior população mundial). E, principalmente, temos dois dos mais renomados institutos de pesquisas em vacinas, capazes de produzir milhões de doses em solo brasileiro: Fiocruz e Instituto Butantan. Então, terminaremos o próximo ano com uma taxa de imunização enorme da população. Que Deus permita que as vacinas sejam eficazes e não se tornem obsoletas com mutações do vírus. Precisamos nos livrar desta praga! Desta e de todas as outras abordadas ao longo do texto. Feliz ano-novo a todos!

Referências:

[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/12/grupo-de-promotores-de-sp-pede-prioridade-para-categoria-na-vacinacao-contra-covid-19.shtml

[2] https://veja.abril.com.br/blog/radar-economico/ministros-do-stj-tentam-furar-fila-da-vacina-mas-fiocruz-nega-pedido/

[3] https://www.istoedinheiro.com.br/stf-solicita-a-reserva-de-7-mil-vacinas-a-fiocruz-para-servidores/

[4] https://veja.abril.com.br/blog/roberto-pompeu-de-toledo/acabou-mas/

[5] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/12/28/vacinas-plataformas-como-funcionam/

[6] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/andamento-da-analise-das-vacinas-na-anvisa

[7] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/12/28/vacinas-plataformas-como-funcionam/

[8] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/12/27/vacina-de-oxford-deve-ser-aprovada-nesta-semana-pelo-reino-unido-diz-ceo.htm

[9] https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/governo-federal-ja-garantiu-300-milhoes-de-doses-de-vacinas-contra-a-covid-19-para-2021#:~:text=Vale%20ressaltar%20que%20qualquer%20vacina,Mais%20uma%20vez%2C%20afirmo.

[10] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/12/27/vacina-de-oxford-deve-ser-aprovada-nesta-semana-pelo-reino-unido-diz-ceo.htm

[11] https://saude.abril.com.br/medicina/como-e-o-plano-de-vacinacao-contra-a-covid-19-do-governo-federal/

[12] https://veja.abril.com.br/saude/em-meio-a-pandemia-brasil-cria-confusao-inaceitavel-em-torno-da-vacinacao/

[13] https://veja.abril.com.br/saude/em-meio-a-pandemia-brasil-cria-confusao-inaceitavel-em-torno-da-vacinacao/

FOTO: https://www.google.com/search?q=vacine+a+cabe%C3%A7a&rlz=1C1GCEA_enBR918BR918&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwiiyN–hfHtAhUlHrkGHdZMBCoQ_AUoAXoECAUQAw&biw=1366&bih=657#imgrc=qTnX6ztib9wrbM

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado