O STF decidiu, em sessão plenária datada de 15/04/2020, por unanimidade[1], que Governadores e Prefeitos tinham (e ainda têm) legitimidade para definir quais seriam as chamadas ‘atividades essenciais’, aquelas que não seriam paralisadas durante a epidemia do coronavírus. Ademais, o STF definiu que Estados e Municípios, dentro de seus espaços normativos, podiam fixar regras de distanciamento social, suspensão de atividade escolar e cultura, circulação de pessoas etc. Para Alexandre de Moraes, os Governadores conhecem melhor as realidades regionais e os Prefeitos as locais: “Não é possível que a União queira ter monopólio da condução administrativa da pandemia. É irrazoável”.
Assim julgou o STF a referida ação, movida pelo PDT contra uma Medida Provisória editada pelo Presidente Jair Bolsonaro – com o objetivo de concentrar no Governo Federal o poder de editar uma norma geral sobre os aludidos temas. Tal MP alterara uma lei de fevereiro, que previa quais ações poderiam ser tomadas durante a crise gerada pela pandemia do coronavírus. Isso iniciou uma queda de braço entre a União e alguns Estados, mormente Rio de Janeiro e São Paulo, cujo desfecho representou uma ‘vitória’ dos Governos Estaduais, que, a partir dali, assumiram as rédeas do combate à pandemia.
Nasceu aí a famosa ‘descentralização’ no trato da COVID-19. E, de lá pra cá, o que assistimos foi um enorme bate-cabeça entre Municípios, Estados e União. Não seria pra menos, afinal, estamos falando de 27 Unidades Federadas, 5.570 Municípios e a União, que governa um país de dimensões continentais, com mais de 210 milhões de habitantes.
Os equívocos perpetrados pelo Presidente Jair Bolsonaro são evidentes: minimizou a gravidade da doença (“gripezinha”), deixou de tentar concatenar as ações contra a COVID-19 no país e, para coroar, demitiu dois Ministros da Saúde, em plena pandemia.
Ocorre que a situação é complexa: empoderados, Governadores e Prefeitos assumiram para si boa parcela das responsabilidades também. Alguns se saíram bem, outros nem tanto. De qualquer modo, nenhum deles foi capaz de parar o contágio, que seguiu firme Brasil afora, iniciando-se nas Capitais e partindo posteriormente para o interior do país.
De Março até hoje já se vão quatro meses desde que a OMS decretou a pandemia e três desde a fatídica decisão proferida pelo STF. Os dados são desoladores, afinal, estamos praticamente com 80 mil mortos. Conforme números do próprio Ministério da Saúde, em 19/07/2020[2] tínhamos: 2.098.389 casos confirmados; 1.371.229 recuperados; 79.488 mortos. Enfim, algo muito triste, que deveria nos unir, mas, não nos uniu…
De toda sorte, é preciso ter em mente que o Brasil não ficou inerte. Quer dizer, além daquilo que se viu (e ainda se vê) em âmbito Municipal e Estadual, muitas foram as medidas adotadas pelo Governo Federal para tentar amainar o problema. Seja na esfera da saúde, seja na seara econômica. Quero dizer, ainda que não tenha sido combatida de modo coordenado, o que seria muito mais eficaz, claro, a pandemia foi objeto de muitas ações da União. E isso é um fato, goste você ou não do ocupante do Palácio do Planalto.
A primeira medida baixada foi a postergação de cobrança de tributos federais (e sua apuração). Assim, as empresas e pessoas físicas puderam manter recursos em seus caixas para o longo período sem receitas que estava por vir. Em razão disso, apenas no mês de Maio o impacto negativo na arrecadação federal foi de R$38,792 bilhões[3].
Aliado a isso, a União implementou um gigantesco programa de transferência de renda que, segundo o Ministério da Cidadania[4], chegou a 65,2 milhões de pessoas, no total de R$121,1 bilhões pagos a título de ‘auxílio emergencial’. As parcelas de R$600,00 ou R$1.200,00 (mães solteiras), foram pagas aos integrantes do Bolsa Família, pessoas do Cadastro Único e, ainda, a trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos, desempregados e contribuintes individuais do INSS. Trata-se do maior programa de transferência da renda da história brasileira e um dos maiores do mundo.
Também houve medidas econômicas outras como[5]: custeio federal de parte da folha de pagamento das pequenas e médias empresas, ante à suspensão de diversos contratos de trabalho, com impacto estimado de R$40 bilhões; a Medida Provisória 970/2020, que abriu crédito extraordinário de R$29 bilhões para os ministérios da Saúde e da Cidadania, autorizando a contratação de até 5.158 profissionais para atuar na assistência à saúde e apoio no combate ao novo coronavírus; a Lei Complementar 173/2020 que concedeu ajuda federal de R$60,15 bilhões a Estados e Municípios para fortalecimento das ações de combate à pandemia; a Medida Provisória 992/2020[6], que criou o capital de giro para preservação de empresas (com receita bruta anual de até R$300 milhões), cujos recursos serão vertidos mediante contratos assinados por meio do Banco do Brasil, o que implicará na injeção aproximada de R$120 bilhões na economia; o saque emergencial[7] do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o adiantamento do abono do PIS / PASEP, a partir de 29/07/2020, que vão liberar R$44,73 bilhões a trabalhadores que têm ou já tiveram carteira assinada; dentre diversas medidas mais[8] de enfrentamento da pandemia.
De se ver, portanto, que mesmo que não estejamos dentre os países que combateram melhor a doença, estamos empenhando esforços nesse sentido, enquanto nação. E aqui não me refiro ao Governo, mas, ao país – ações Municipais, Estaduais e Federais (nestas últimas, inclusive por medidas somadas do Executivo e do Legislativo). Ora, assim como o resto do mundo, estamos lidando com o novo. E isso não é algo simples ou fácil.
Para traçarmos um quadro mais justo com o país, para além dos números veiculados diuturnamente pelo ‘consórcio da imprensa’, é preciso ter em mente os dados com vistas à incidência da doença por milhão de habitantes – o Brasil ocupava a 10ª posição no dia 15/07/2020[9], ficando atrás dos Estados Unidos, Peru e Chile, em relação a países das Américas. Já quanto à mortalidade, o Brasil estava em 11º lugar[10] – nesse mesmo dia, a mortalidade no Brasil estava em 358,6 mortes por milhão, enquanto outros países como Bélgica (848,3 m.p.m.), Reino Unido (667,2 m.p.m.), Espanha (607,9 m.p.m.) e Itália (578,0 m.p.m.), que também têm sistemas universais de saúde, tinham uma mortalidade muito acima da brasileira. Quer dizer, apanhamos nós e, igualmente, apanharam eles.
O cenário nacional parece estar finalmente apontando alguma luz no fim do túnel. Isso porque a ‘média móvel’ de contágio em 18/07/2020[11] foi de 33.491 por dia, uma variação de -10% (menos dez por cento) em relação aos casos registrados em 14 dias. Vejamos:
De outro lado, a média móvel de mortes em 18/07/2020[12], nos últimos 7 dias, foi de 1.046 (óbitos), uma variação de +1% (mais um por cento) em relação aos dados registrados em 14 dias. Um número assustadoramente alto, mas, que representa claramente um ‘platô’ da doença. E que deve seguir a tendência de queda, acompanhando a redução do contágio:
Então, podemos e devemos ficar consternados com tantas perdas de vidas. Porém, não cabe sermos simplistas e pretender atribui-las unicamente a este ou àquele governante, mesmo que haja uma tendência humana inata em fazer isso. Abandonemos o complexo de vira-latas! No caso da pandemia diversas nações sofreram e ainda estão sofrendo, inclusive nós. E não há data para isso tudo acabar. Muito menos garantia de que não enfrentaremos novas ondas de contágio (e mortes), até que tenhamos a redentora vacina.
Nesse contexto, não há sentido na fala do Ministro Gilmar Mendes do STF, que por ocasião de uma live, promovida pela Revista Isto É, no dia 11/07/2020[13], disse que o Governo (e o Exército) estaria promovendo um ‘genocídio’. Afirmou Gilmar Mendes: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Pode se ter estratégia e tática em relação a isso. Não é aceitável que se tenha esse vazio no Ministério da Saúde. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal, é atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é ruim, é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. Não é razoável para o Brasil. É preciso pôr fim a isso”.
Em primeiro lugar, a descentralização na tomada de decisões decorreu do próprio STF.
Em segundo lugar, é importante anotar que não só Eduardo Pazuello (general do Exército Brasileiro) foi Ministro da Saúde sem ostentar o diploma de médico – tivemos, desde o advento das eleições diretas[14]: o químico José Goldemberg (24/01/92 a 12/02/92), o engenheiro civil José Serra (31/03/98 a 20/02/02), o economista Barjas Negri (21/02/02 a 31/12/02), o bioquímico José Agenor Álvares da Silva (31/03/06 a 16/03/07), o engenheiro civil Ricardo Barros (13/05/2016 a 02/04/2018) e o advogado Gilberto Occhi (02/04/2018 a 02/01/2019). Lembrando que Pazuello é interino e, antes dele, ocuparam o Ministério da Saúde neste Governo os médicos: Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.
Por último, conforme noticiado pelo ‘Painel’ do Grupo Folha de São Paulo[15], que ouviu 17 Secretários de Saúde (Estaduais), todos disseram aprovar o trabalho do militar na pasta (os demais não foram encontrados ou não responderam à reportagem). Houve elogios dos representantes da saúde dos Estados da Bahia, Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Distrito Federal, Espírito Santo, São Paulo, Ceará, Tocantins, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraíba, Alagoas, Pernambuco, Goiás, Pará e Acre – muitos deles são inclusive de governos de oposição a Jair Bolsonaro.
Nessa toada, fica claro que a fala do Ministro Gilmar Mendes é, na verdade, política. E tem o direito de fazê-lo, claro! O que não foi correto da parte dele foi dizer que sua divergência de visão de governança com o Executivo Nacional implica num ‘genocídio’. Pior: pretendeu colocar como coautores do crime os integrantes da cúpula do Exército. E isso gerou indignação dentre os fardados: numa nota publicada no dia 13/07/2020[16], assinada pelos chefes da Defesa (Fernando Azevedo e Silva), Marinha (Ilques Barbosa Junior), Exército (Edson Pujol) e Aeronáutica (Antônio Bermudez), constou do texto que: “Comentários dessa natureza, completamente afastados dos fatos, causam indignação. Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”.
O sociólogo Demétrio Magnoli, notório crítico do Governo Bolsonaro, disse em sua coluna de 17/07/2020, veiculada na Folha de São Paulo[17], que: “banalizar o genocídio é uma forma de vestir a omissão com os andrajos do radicalismo retórico (…). Nessa moldura, a finalidade da palavra já não é nomear precisamente um fenômeno, mas causar escândalo, gerar comoção instantânea, marcar a ferro o alvo da hora. Nem mesmo juristas, que deviam saber mais, escapam à tentação”.
Postas as coisas desta forma, ainda que eu não concorde com a postura de Bolsonaro diante da pandemia, estou alinhado à conclusão de Demétrio Magnoli – o Ministro Gilmar Mendes forçou a barra. E espanta muito que um magistrado do STF se dedique a fazer política fora do seu horário de expediente (já que ninguém o impede de fazê-lo em seus votos). Isso contribui apenas para ‘esticar a corda’. E não resolve em nada a pandemia.
Que fique muito claro: excetuando-se casos em que faltaram leitos de UTI, como em Manaus/AM e Natal/RN (o que ocorreu durante um curto período de tempo), foram raros os casos em que o sistema de saúde ‘colapsou’ no Brasil. O Estado de São Paulo, por exemplo, registra quase 20 mil mortes até 20/07/2020, mesmo sendo o Estado mais rico do país e o que goza do maior número de leitos (que não faltaram durante a pandemia). O que nos leva a acreditar que as mortes são decorrentes da doença em si e não da falta de cuidados médicos. Assim, não para de pé sequer eventual ‘genocídio’ por omissão.
Referências:
[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/15/maioria-do-supremo-vota-a-favor-de-que-estados-e-municipios-editem-normas-sobre-isolamento.ghtml
[2] https://covid.saude.gov.br/
[3] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/06/23/resultado-da-arrecadacao-de-maio-foi-reflexo-de-medidas-contra-pandemia-diz-receita.ghtml
[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-07/caixa-paga-4a-parcela-de-auxilio-beneficiarios-do-bolsa-familia
[5] https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/covid-19/timeline?b_start:int=0
[6] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/17/editada-mp-que-cria-linha-de-credito-para-empresas-com-receita-de-ate-r-300-mi
[7] https://veja.abril.com.br/economia/governo-comeca-a-liberar-r-44-bi-em-medidas-alem-do-auxilio-emergencial/
[8] https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020/junho/medidas-adotadas-pelo-governo-federal-no-combate-ao-coronavirus-5-de-junho
[9] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/07/15/interna-brasil,872480/brasil-chega-a-75-mil-mortes-por-covid-19-e-1-9-milhao-de-casos.shtml
[10] https://www.poder360.com.br/coronavirus/leia-as-mortes-por-milhao-de-habitantes-no-brasil-e-em-8-paises/
[11] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/07/18/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-18-de-julho-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml
[12] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/07/18/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-18-de-julho-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml
[13] https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/07/12/o-exrcito-est-se-associando-a-esse-genocdio-diz-gilmar-mendes-sobre-pandemia.ghtml
[14] https://www.saude.gov.br/galeria-de-ministros
[15] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/07/alvo-de-gilmar-mendes-pazuello-e-quase-unanimidade-entre-secretarios-de-saude.shtml
[16] https://veja.abril.com.br/politica/forcas-armadas-e-ministerio-da-defesa-sobem-o-tom-em-nota-a-gilmar-mendes/
[17] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2020/07/banalizar-o-genocidio-e-uma-forma-de-vestir-a-omissao-com-os-andrajos-do-radicalismo-retorico.shtml
FOTO: https://www.google.com/search?q=gilmar+mendes&rlz=1C1GCEA_enBR815BR815&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjnj_uq_dzqAhUTILkGHV1QACMQ_AUoAnoECBwQBA&biw=1366&bih=657#imgrc=YIfHWcos6CGE0M
Ricardo Dantas
Advogado
Muito bom, Ric! Entendi perfeitamente seu posicionamento, mas na minha interpretação, acredito que o que o Min Gilmar Mendes possa estar querendo dizer é que está faltando gestao e clareza por parte do Ministerio da Saúde, o que não é nenhuma mentira. Entendo que foi o próprio STF quem deu essa prerrogativa aos governadores e prefeitos, mas não há gestão nem planejamento nenhum partindo do Ministério da Saúde, e é isso que está deixando as pessoas mais confusas! O desfecho poderia estar sendo muito melhor se estivéssemos de fato sendo melhor conduzidos! Isso é inegável! Quando ainda era o Mandetta, pelo menos ele ainda fornecia entrevistas diárias, informando e norteando a população. Já agora, a população está mais perdida do que nunca, e a vontade mesmo do Governo era “abafar” essa pandemia, a se notar pelo “silêncio” q temos no Ministério da Saúde. Independente do cargo técnico de quem o ocupa, é OBRIGAÇÃO do Ministério da Saúde de um
governo decente ao menos informar as pessoas!!! Se estivéssemos sendo melhor conduzidos e informados, te garanto que o comportamento das pessoas mudaria, e obviamente o desfecho seria outro muito melhor! Mas com esse Ministério da Saúde “morto” e o presidente que não usa nem máscara e ainda vangloria medicamento placebo, estamos “no sal” mesmo! Sem informação correta e confiável, as pessoas realmente não sabem o que fazer, nem no que acreditar, e isso aumenta SIM o contágio; muitas mortes poderiam estar sendo evitadas apenas com informações mais precisas partindo do Governo. Mas eles fazem exatamente ao contrário. Portanto, são Genocidas SIM!
Ok Rafa, compreendo sua indignação. Como disse no texto, Bolsonaro está jogando parado nessa pandemia. Mais que isso, é um negacionista! Mas isso não o torna um genocida, afinal, há recursos sendo alocados para Estados e Municípios. E seus governantes têm a atribuição de determinar o que abre, o que fecha, como funcionam as medidas de locomoção das pessoas, uso de máscaras etc. Enfim, estamos perdendo em conjunto para a pandemia. E é a pandemia quem está matando as pessoas. Acredite: o povo não está mais obedecendo regras de isolamento. Todo mundo está nas ruas, nas praças, parques, praias etc. E uma nação é composta por Estado, território e POVO… Por fim, o Gilmar Mendes querer ‘lacrar’ politicamente, sendo ele membro do STF, é igualmente irresponsável.