Amigo leitor, como sabe, politicamente, hoje, não me considero nem de esquerda e nem de direita. Me considero um liberal, mas, não no sentido clássico da palavra. Acredito no liberalismo social, aquele que governa vários países de primeiro mundo, principalmente na Europa. Mas, também há regimes assim na América do Norte, Ásia e Oceania.

Ademais, por formação acadêmica, me graduei e atuo com o Direito, militando como advogado desde que consegui minha OAB, no início de 2005. Uma das áreas na qual atuo, e isso desde quando fui estagiário nos tempos de faculdade, é o Direito Criminal. Desde aquela época eu já defendia que os ritos processuais são sagrados, as normas do jogo, sendo que a liberdade é a regra e a prisão exceção. De toda sorte, há questões que são uníssonas entre juristas – o sistema acusatório é um deles, uma conquista que passou a ser consagrada por Estados Democráticos, pelo menos, a partir da Revolução Francesa.

Por fim, como premissa básica desta coluna, anoto que sim, claro (!!!), há militantes de direita totalmente extremistas, pessoas que se dedicam a difundir fake news e a fomentar o ódio, talvez no afã da volta da ditadura militar, ou mesmo para que ganhe alguns superpoderes o ‘mito’ Bolsonaro, que viraria uma espécie de ditador das bananas. Mas, é preciso convir, também, que esse extremismo não nasceu ontem, ele é velho. E conta igualmente com uma pilha de representantes na dita ‘esquerda radical’, aquela que ama o socialismo – porém é incapaz de apontar um único lugar aonde ele trouxe algo além de fome e opressão aos cidadãos que não componham a nata do partido político no Poder. Conheço gente da extra direita e da extrema esquerda. Assim como conheço aqueles que sequer vão votar, não gostam de política e já usaram o título de eleitor para fazer churrasco. Convivo com todas essas pessoas. Poucas são ‘perigosas’, no sentido violento da palavra. Mas, obviamente, fazem um mal danado à nossa já cambaleante democracia.

Feitas tais considerações, coloco outra premissa: é preciso assistir ao vídeo do Deputado Daniel Silveira, ainda disponível nos veículos de mídia[1]; bem como é preciso ler a íntegra da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes[2]. Depois disso, e após digerir todas as informações, com calma, é que se pode tomar partido de um lado ou outro, no que diz respeito à lisura ou não de sua prisão em flagrante, tal qual determinada.

O assunto pode parece requentado, mas, tenha clareza: é de suma importância! Tanto para os envolvidos, quanto para os membros de Poder, e ainda para nós, os cidadãos ‘comuns’.

Pois bem, em primeiro lugar, convém relembrar que o Inquérito nº 4.781 foi instaurado pela Portaria GP nº 69, de 14/03/2019, do Ministro Dias Toffoli, então presidente do STF, nos termos do art. 43 do Regimento Interno daquela Corte, tendo ele designado (não por distribuição, mas, de modo ad hoc) o Ministro Alexandre de Moraes como Relator. E o motivo oficial de sua instauração seria: apurar “fake news”, bem como as “ofensas e ameaças contra integrantes do STF”. Tudo muito bonito não fosse o fato de que a CF/88 veda tribunais de exceção, bem como exige que os órgãos acusador e julgador sejam autônomos, justamente para réus e acusados sejam tratados com isenção – no referido inquérito, os julgadores também são as próprias vítimas, além de investigadores.

Escrevi sobre esse inquérito numa de minhas colunas, cerca de um ano atrás[3]. Ali eu já deixava claro que algo do tipo indica um adoecimento de nossa democracia. Não havia ainda o vídeo ou a prisão do Deputado Daniel Silveira, embora ele já fosse investigado.

O fato é que o Inquérito nº 4.781 já tramita há 02 anos, e a primeira medida do Relator foi censurar reportagem jornalística do site ‘O Antagonista’ e a matéria de capa da revista ‘Crusoé’, que citavam Toffoli como sendo o “o amigo do amigo de meu pai” na planilha de codinomes dos beneficiários de propinas pagas por Marcelo Odebrecht… Tudo conforme reportagem da época publicada no Correio Brasiliense[4]. Além de ter multado tais veículos de imprensa em R$100 mil, Moraes ainda determinou que a Polícia Federal cumprisse mandados de busca e apreensão contra oito pessoas que criticaram o Tribunal nas redes sociais. Tudo isso motivou procuradores, deputados, senadores e entidades de classe, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Transparência Internacional, a se manifestaram contra o aludido inquérito e as decisões nele tomadas pelo Tribunal, já àquela época.

A Procuradora-Geral de República àquela altura, Raquel Dodge, ante ao absurdo e à arbitrariedade daquele inquérito, promoveu seu ‘arquivamento’ em 17/04/2019, dando concretude à missão institucional do Ministério Público Federal. Porém, Alexandre de Moraes afastou tal pretensão, dizendo: “O pleito da DD. Procuradora-Geral da República não encontra qualquer respaldo legal, além de ser intempestivo, e, se baseando em premissas absolutamente equivocadas, pretender, inconstitucional e ilegalmente, interpretar o regimento da Corte e anular decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal”. E, de lá pra cá, o referido inquérito vem sendo prorrogado, por determinação da Presidência do STF, sem que haja qualquer conclusão (ou acusação).

O quiprocó só foi resolvido pelo Plenário do STF no dia 18/06/2020, quando por dez votos a um, prevaleceu o entendimento de que a a portaria da presidência do STF que deu início às investigações seria sim constitucional[5]. Único a divergir, o Ministro Marco Aurélio considerou que o art. 43 do Regimento Interno do STF, que embasou a instauração do inquérito, não foi recepcionado pela CF/88. Para o ministro, houve violação do sistema penal acusatório constitucional, que separa as funções de acusar e julgar, pois o procedimento investigativo não foi provocado pelo Procurador-Geral da República, e esse vício inicial contaminaria toda a sua tramitação. Segundo ele, as investigações teriam como objeto manifestações críticas contra os ministros que, em seu entendimento, estariam protegidas pela liberdade de expressão e de pensamento.

Perceba que a constitucionalidade ou não do referido inquérito é uma celeuma a parte, algo que precede em 02 anos a prisão do Deputado Daniel Silveira. Trata-se de uma questão jurídica – mas, não de uma questão ‘menor’ ou ‘formal’… A forma como foi instaurado e seus desdobramentos implicam num sem-número de inconstitucionalidades.

Então, eis que no dia 16/02/2021 o Deputado Daniel Silveira coloca no ar seu vídeo, com conteúdo chulo, ofensas diversas, ameaças e alguns outros delitos. Veja: a conduta do parlamentar é indefensável! Seguramente o conteúdo do vídeo deveria implicar a ele uma severa punição administrativa, no conselho de ética da Câmara dos Deputados, bem como poderia valer alguns processos cíveis, por parte dos ofendidos, além de providências de ofício da parte do Procurador-Geral da República, o órgão responsável por promover investigações criminais e ações penais contra quem pratica crimes e tem foro privilegiado. Quer dizer, seguindo a regra do jogo, estampada na CF/88, todas as providências poderiam (e deveriam!) ser tomadas contra o referido deputado. Isso é indiscutível.

Porém, no mesmo inquérito (instaurado 02 anos antes do delito ora analisado), houve a criação da figura jocosamente apelidada por ‘mandado de prisão em flagrante’ no meio acadêmico do Direito. Isso porque, não haveria “flagrância”, e nem mesmo um delito “permanente” ou “inafiançável”, como anotado na decisão. Alexandre de Morais deu decisão de ofício, sem participação alguma do órgão de acusação, pela prisão de Silveira.

Não tem o menor cabimento, ilustre leitor! E o mais espantoso é que mesmo o Ministro Marco Aurélio, que havia decidido tecnicamente pela inconstitucionalidade do Inquérito nº 4.781, resolveu passar ao campo da passionalidade, deliberando pela legalidade da prisão determinada, mandando às favas as regras procedimentais da Carta Magna. Veja: é isso o que acontece quando o investigador, a vítima e o julgador são uma só pessoa… E, aí, nesse afã punitivo de bate-pronto, o STF manteve a prisão, por unanimidade[6].

Não estou discutindo nesta coluna a conduta do Deputado Daniel Silveira, quais seriam suas imunidades parlamentares, se o que disse está ou não abarcado pela ‘liberdade de expressão’, muito menos qual é sua orientação política (no caso, de direita; mas, já vi impropérios parecidos sendo professados por políticos de esquerda contra do STF). O que pretendo é fazer você pensar, leitor! São duas discussões totalmente separadas. Há aquela relativa aos atos do Deputado Daniel Silveira em si. E há o Inquérito nº 4.781, muito anterior, com seus atos praticados, cuja constitucionalidade é bastante duvidosa, inclusive no que toca à prisão de ofício do referido deputado, tal qual fora determinada.

E para coroar todo esse imbróglio, o ápice se deu justamente no episódio da prisão de Silveira, que antagonizou: 1) a defesa do AI-5; e 2) a acusação de que ele praticara crimes contra a segurança nacional, definidos na Lei nº 7.170/83[7], que é contemporânea daquele mesmo período da ditadura militar. É o tipo de coincidência que só acontece no Brasil!

Ademais, como este país não é para amadores, no dia 19/02/2021, por votos 364 votos favoráveis, 130 contrários, e três abstenções, a Câmara dos Deputados manteve a prisão de Daniel Silveira[8], o que foi aclamado pela mídia nacional. Sucede que a referida votação nada tinha a ver com a defesa de ‘Bolsonaro’ ou da ‘direita’, ou mesmo de Daniel Silveira. Ali se estava decidindo apenas se a prisão de ofício determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes era hígida, lícita e constitucional, assim como o inquérito donde foi emanada. Isso independentemente de ser possível e necessário que o referido deputado fosse responsabilizado nas esferas administrativa, cível e criminal (mas, neste último caso, da forma correta, ou seja, com a participação do órgão acusatório, que é a Procuradoria-Geral da República). Eu me pergunto: por que não é possível fazer o certo seguindo as regras do jogo? É preciso praticar violações legais e constitucionais para coibir atos ilícitos? A você que é de esquerda p.ex. eu indago: a Lava Jato desbordou de seu mister ao analisar e julgar os casos de Lula? Depois do que veio à tona com a Vaza Jato os casos dele deveriam ser reanalisados? Sim! Enfim, a questão parece distante, nos rincões de Brasília/DF, mas, esse tipo de problema acontece todos os dias, em diversas Comarcas…

Perceba: a esmagadora maioria dos políticos que posou de mocinho endossando a prisão de Daniel Silveira (em sua quase totalidade base bolsonarista na Câmara), agora está acelerando a discussão e votação da intitulada PEC da Impunidade[9]. Elaborada por grupo indicado pelo Presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL) – o texto traz restrições à prisão contra deputados e senadores e também um abrandamento da Lei da Ficha Limpa.

Enfim, não é possível bater palmas para coisas que parecem boas, mas, que não são! Os fins não justificam os meios, caro leitor. É possível ser contra o Inquérito nº 4.781, contra a prisão determinada por Alexandre de Moraes e, ao mesmo tempo, a favor da punição dos atos praticados por Daniel Silveira. Bem como é imperioso ser contra essa PEC da Impunidade. Acompanhe o posicionamento da bancada do Novo na Câmara[10], pois é exatamente isso que eles corajosamente defenderam. Fiquemos com a democracia!

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado