Segundo a Revista Superinteressante[1], a primeira representação de uma roda já encontrada pelos arqueólogos data de 3.500 a.C. – ou seja, há 5.520 anos – e foi feita numa placa de argila achada nas ruínas da cidade-Estado de Ur, onde hoje fica o Iraque.

Assim, quando o assunto é o Brasil, a sua política e o enfrentamento de seus problemas seculares, não adianta querer ‘inventar a roda’. A roda já está aí faz tempo! O que é preciso é fazer uso dela. Colocar em marcha e no caminho o veículo que nos levará mais longe. E evitar essas pessoas e discussões que apenas nos põem para andar em círculo…

Já tive a oportunidade de escrever que “a política brasileira carece de reformas[2], quando expus, mesmo superficialmente, que na tripartição dos Poderes aquele que mais tem peso é o Legislativo. Afinal, é dali que saem as normas que todos devemos seguir – e aí se incluem os membros dos demais Poderes, inclusive os senhores legisladores (ao menos deveria ser assim). Atentos a isso, diversos países prósperos, do dito ‘primeiro mundo’, adotam hoje eleições proporcionais com voto distrital, bem como o Parlamentarismo.

Se é assim, então deveríamos começar qualquer mudança, qualquer correção de postura com direção ao progresso, por meio da qualificação de nossos legisladores. Quero dizer: deveríamos eleger melhor nossos vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores. E isso independentemente de uma possível reforma política. No caso, teríamos que trocar as rodas com o carro andando – pensar melhor antes de colocar os números de qualquer um nas urnas, para os cargos no Legislativo. Se não o fizermos, todo o restante da discussão política será uma nova tentativa de inventar a roda. Esteja certo disso!

Conforme veiculado pela Gazeta do Povo em Janeiro de 2019[3], um deputado federal custa R$278 mil por mês. São R$3,3 milhões ao ano ou R$13,4 milhões por legislatura. Mas, as despesas totais com salários, assessores, cota para o exercício do mandato, apartamentos funcionais, auxílio-moradia e viagens somam R$1,7 bilhão por ano – ou R$6,8 bilhões por legislatura – tudo pago pelo contribuinte por meio dos tributos que são cobrados. E a maior despesa é justamente com o salário dos cerca de 11,4 mil assessores dos gabinetes – os secretários parlamentares, de livre nomeação. Eles podem trabalhar em Brasília ou no Estado de origem do parlamentar. Cada deputado conta com R$106,8 mil por mês para contratar até 25 assessores, com salários de até R$15 mil.

Ora, não é difícil entender, então, por qual motivo existe a chamada ‘rachadinha’, que nada mais é que um combinado entre o parlamentar e seu assessor, nomeado por aquele, para que parte dos salários deste último sejam ‘devolvidos’ ao parlamentar. Explicando em linguagem bem clara: uma associação criminosa para desfalcar o Erário Público, quer dizer, o dinheiro que você, eu e os cidadãos honestos pagam de tributos nesse país.

Fiquemos apenas com o (mau) exemplo dos deputados estaduais fluminenses, algo que está nos últimos noticiários nacionais, em virtude a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do então deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro (filho do presidente). A Assembleia do Rio de Janeiro é composta por 70 deputados e, conforme o noticiário do final da legislatura passada (site G1[4] e Folha[5]), relatórios do antigo COAF indicaram ‘movimentações atípicas’ nas contas de 27 deputados e 75 assessores (pelo menos), indicando possível prática de ‘rachadinha’. Didaticamente, segue a listagem com valores suspeitos em ordem decrescente (em milhões): André Ceciliano (PT) = R$49,3; Paulo Ramos (PDT) = R$30,3; Márcio Pacheco (PSC) = R$25,3; Luiz Martins (PDT) = R$18,5; Dr. Deodalto (DEM) = R$16,3; Carlos Minc (PSB) = R$16,0; Coronel Jairo (SD) = R$10,2; Marcos Müller (PHS) = R$7,8; Luiz Paulo (PSDB) = R$7,1; Tio Carlos (SD) = R$4,3; Pedro Augusto (MDB) = R$4,1; Átila Nunes (MDB) = R$2,2; Iranildo Campos (SD) = R$2,2; Márcia Jeovani (DEM) = R$2,1; Jorge Picciani (MDB) = R$1,8; Eliomar Coelho (PSOL) = R$1,7; Flávio Bolsonaro (PSL) = R$1,3; Waldeck Carneiro (PT) = R$0,7; Benedito Alves (PRB) = R$0,5; Marcos Abrahão (Avante) = R$0,3.

Veja, portanto, que há legisladores de muitas agremiações diferentes metidos nessa investigação das ‘rachadinhas’, o que indica que é um problema endêmico, além de muito antigo. Isso se repete, aliás, nas 5.570 Câmaras Municipais, nas 27 Unidades Federadas, além da Câmara Federal (513 deputados) e do Senado da República (81 parlamentares). Assim, a solução passa pela severa diminuição do número de cargos de livre nomeação. Além, é claro, de depender da ponta de seus dedos, que podem reconduzir ‘bandidos de estimação’ ao cargo parlamentar a cada 04 anos. Pense nisso – e desapaixonadamente!

No Poder Executivo, igualmente, o problema é gigantesco. Conforme matéria da BBC Brasil[6], desde a Constituição Federal de 1988, ou seja, nos últimos 32 anos, o número de servidores públicos ativos nas três esferas apenas do Executivo (na União, Estados e Municípios) mais que dobrou: cresceu 123%. Em Novembro de 2019, a força de trabalho da União, sozinha, era de 571.808 pessoas (incluindo comissionados, servidores efetivos e empregados públicos). Em Dezembro de 2018, no fim do governo de Michel Temer, o número de cargos e funções comissionadas era de 32.694 em todo o Poder Executivo. No fim de Novembro de 2019, o mesmo número era de 31.739, uma redução de apenas 2,9%. E esses cerca de 32 mil representam o menor número de servidores comissionados desde 2009, quando somavam quase 31 mil. São atualmente 10.850 os cargos (DAS) que podem ser ocupados sem concurso, da confiança do nomeante, sem vínculo permanente[7].

E é exatamente sobre esses cargos que avançam novamente os partidos do dito ‘Centrão’, não só de olho na remuneração paga por cada um, mas, na detenção do poder da caneta que cada cargo desses pode propiciar, no que tange aos cofres públicos – que podem ser direcionados aos diversos interesses que movem a aliança entre Executivo e Legislativo. Sabemos que, quando essa simbiose atinge altíssimos patamares, quem perde é o país, ou melhor, você, eu e os cidadãos que pagam tributos – mais uma vez, as vítimas de sempre.

Veja, mesmo não seja determinado o montante desviado pela corrupção na Petrobras (grande exemplo do nosso Presidencialismo de ‘cooptação’), procuradores da força-tarefa da Lava-Jato já estimaram o rombo em R$20 bilhões. Em laudo de 2015, peritos da Polícia Federal estipularam que os desvios estariam dentro de uma faixa que vai de R$6,4 bilhões a R$42,8 bilhões, trabalhando com uma variação de 3% a 20% para a majoração excessiva das margens de lucros das contratantes (ou seja, o percentual da propina). De todo modo, o fato é que, até Julho de 2018, já tinham sido recuperados R$13,4 bilhões[8].

No Poder Judiciário a coisa não é diferente, acredite! Ainda que não haja tantos cargos em comissão como ocorre nos outros dois Poderes (não naquela escala) e, além de seus membros togados serem menos propensos à corrupção clássica (ao menos é o que parece), há um gravíssimo problema: sua folha de pagamentos. Explicarei com mais vagar.

Conforme reportagem do Correio Brasiliense, veiculada em 23/09/2019[9], considerados os ‘penduricalhos’, 65% dos juízes no Brasil ganham acima do ‘teto’ de R$39,3 mil. Quer dizer, ganham mais que os Ministros do Supremo Tribunal Federal e muito mais que o Presidente da República, cujo subsídio é de R$30,9 mil. Para se ter uma ideia, o ‘auxílio-moradia’ – obra de uma liminar concedida pelo Ministro Luiz Fux (STF), em 2014, só teve seu fim decretado após uma negociação duríssima que obrigou o governo Michel Temer a avalizar um reajuste de 16,38% para os magistrados, o que gerou efeito cascata nos Estados, por elevar o teto de salários para todos os servidores.

O texto da Constituição Federal, no artigo 37, inciso XI, impõe um limite remuneratório aos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos. Nestes casos, os salários teriam um limite máximo, que seria correspondente ao salário dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – que, atualmente, está fixado em R$39.293,00 –, com os demais servidores sendo pagos proporcionalmente às demais funções. No entanto, o próprio artigo 37, no parágrafo 11, determina que, para efeito dos limites remuneratórios, não serão computadas as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei. E é justamente nesta brecha que os super-salários se escondem, conforme matéria da Revista Exame[10].

Dentro desse embrulho chamado ‘verbas indenizatórias’ há uma grande variedade de acréscimos no contracheque dos magistrados, tais como: auxílio-moradia, auxílio-paletó, ajuda de custo, auxílio-livro, gratificação por serviço extraordinário, gratificação por serviço cumulativo, gratificação por substituição, entre outros. Desta forma, utilizando-se desse imoral artifício, houve uma brutal inversão de valores, e o teto virou piso… Para se ter uma ideia, apenas um juiz, isso mesmo, um juiz, recebeu em Maio de 2019 o valor de R$752.159,39 – vencimento líquido de Abril pago ao juiz conforme o Portal da Transparência do TJ/MG (matéria do site G1 de 31/05/2019[11]). O “salário bruto” desse juiz é de R$33.689,11. Entretanto, de verbas indenizatórias, classificadas pelo TJ/MG como “vantagens eventuais”, ele recebeu, de uma só vez, R$725.037,51. Pior: apenas o aludido valor bruto é tributado pelo INSS (11%) e pelo Imposto de Renda (até 27,5%).

Na referida matéria do G1, o secretário-geral da ‘ONG Contas Abertas’, entidade que analisa gastos públicos no Brasil, Gil Castelo Branco, enfatizou que os super-salários não só no Judiciário, mas no setor público em geral, são um entrave para o crescimento no Brasil e que falta vontade entre os agentes para mudar a situação: “O Banco Mundial já constatou que quase 70% dos servidores públicos estão entre os 10% mais ricos do Brasil. No geral, ganham 70% a mais do que os pares na iniciativa privada. E estes vencimentos não estão vinculados à melhoria do desempenho. (…) O diagnóstico está pronto e acabado. A discussão agora é se há ambiente político para que esta situação mude. Aparentemente, não há”, afirmou. Sim, infelizmente, uma reforma administrativa é algo tão longe no horizonte hoje quanto uma reforma política, ou mesmo a tributária.

Enfim, pra quem acredita que eleger um ‘ídolo’ para a Presidência da República, ou ao contrário, tirá-lo do Poder via impeachment, será a solução de nossos problemas, deixo um conselho: pode ir tirando o cavalinho da chuva! Nosso buraco é bem mais embaixo.

Referências:

[1] https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quando-foi-inventada-a-roda/#:~:text=A%20primeira%20representa%C3%A7%C3%A3o%20de%20uma,ou%20talvez%20alguns%20s%C3%A9culos%20antes.

[2] http://ricardodantas.blog.br/a-politica-brasileira-carece-de-reformas/

[3] https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/lucio-vaz/salario-assessores-cotao-moradia-viagens-saiba-quanto-custa-um-deputado/

[4] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/01/21/mprj-investiga-27-deputados-e-75-assessores-veja-movimentacoes-suspeitas-e-o-que-eles-dizem.ghtml

[5] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/psc-pt-e-psol-aparecem-em-relatorio-do-coaf.shtml

[6] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51145282

[7] https://diariodopoder.com.br/politica/comissionados-caem-um-pouco-mas-sao-32-mil-2

[8] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/lava-jato-recupera-um-terco-do-rombo-maximo-estimado-na-petrobras.shtml

[9] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/09/23/internas_economia,783859/com-penduricalhos-65-dos-juizes-ganham-acima-do-teto-de-r-39-3-mi.shtml

[10] https://exame.com/blog/instituto-millenium/as-verbas-indenizatorias-e-os-super-salarios-do-judiciario/

[11] https://g1.globo.com/google/amp/mg/minas-gerais/noticia/2019/05/31/verbas-indenizatorias-garantem-salario-de-mais-de-r-700-mil-em-maio-a-juiz-do-tjmg.ghtml

FOTO: https://www.google.com/search?q=pode+ir+tirando+seu+cavalinho+da+chuva&rlz=1C1GCEA_enBR815BR815&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi=2&ved=2ahUKEwiGo6nn_5PqAhWjzjgGHWFuDJAQ_AUoAXoECA0QAw&biw=1366&bih=657#imgrc=OIbpW2hsezrDiM

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado