Amigo leitor, tenho tentado escrever sobre política, até porque há questões cabeludas surgindo todo santo dia, produzidas por nossos governantes (em todos os níveis). Mas, tive que voltar a escrever sobre a pandemia… Não sou médico, não trabalho com a saúde, mas, encarei nos últimos três dias um dificílimo ‘choque de realidade’ ante aos dados.

Escrevi sobre o coronavirus[1], logo no início da epidemia aqui no Brasil, em 17/03/2020, quando, dentre outras coisas, me dei o direito de criticar a OMS pela atuação neste caso. Dali em diante, mais motivos me levam a reiterar essas críticas. Vejamos dois exemplos.

No dia 08/06/2020, a líder técnica da organização e epidemiologista, Maria Van Kerkhove, afirmou que “a partir dos dados que temos, ainda parece raro uma pessoa assintomática realmente transmitir adiante para um indivíduo secundário”. No dia seguinte, o diretor executivo do programa de emergências da OMS, Michael Ryan, veio a público para dizer o contrário: “estamos absolutamente convencidos de que a transmissão por casos assintomáticos está acontecendo, a questão é o quanto”[2].

Sim, a Sra. Maria Van Kerkhove ressaltou que existe diferença entre ‘assintomáticos’ e ‘pré-sintomáticos’ (a fase pré-sintomática refere-se aos estágios iniciais de uma doença, antes que os sintomas se desenvolvam, enquanto um paciente assintomático é aquele que não apresenta sintomas durante o curso de uma infecção), bem como afirmou que “os estudos mostram que as pessoas infectadas com Covid-19 têm mais risco de transmitir a doença quando apresentam os primeiros sintomas”. Mas, no parágrafo anterior, me refiro apenas e tão somente à contradição da OMS em relação aos ‘assintomáticos’.

Ora, é evidente que disseram uma coisa e, no dia seguinte, disseram outra! E pior, para justificar a segunda afirmação, deixaram claro que não fazem a menor ideia de quanto cada indivíduo contaminado colabora com a transmissão do vírus… Nas entrelinhas, é possível entender que os assintomáticos colaboram quase nada, os pré-sintomáticos colaboram um pouco e os sintomáticos colaboram muito na transmissibilidade. E, se for isso mesmo, a coisa muda um pouco de figura, afinal, estamos todos trancados em casa.

Outra controvérsia formou-se em torno da hidroxicloroquina. Acredito que não haja um Santo Graal no tocante a essa medicação, como quer fazer crer Bolsonaro. Entretanto, a par das questões políticas, o que deve mover a OMS é a ciência. Sucede que, mesmo no campo da medicina, houve postura contraditória por parte da OMS, que inclusive se desculpou quanto a esse medicamento[3] – a OMS havia interrompido os estudos que conduzia, depois que a revista científica ‘The Lancet’ apontou aumento do índice de mortalidade em pacientes que eram submetidos à terapia com hidroxicloroquina. Então, após ter propagandeado isso, a OMS voltou atrás e retomou as pesquisas depois que três dos quatro autores do texto se retificaram e pediram a retirada do material do ar.

Vemos, portanto, que nem mesmo os dados e posições da OMS são indenes de dúvidas.

Escrevi também, noutra coluna[4], datada de 22/03/2020, sobre os problemas afetos à quarentena em si, com enfoque mais psicológico, afinal, muitos foram lançados ao campo do medo. Já outros, se entrincheiraram nas redes sociais, descontando suas angústias no ódio (isso inclusive ganhou as ruas de diversos países, por outros motivos).

Naquela oportunidade, destaquei uma fala do então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que num lampejo de sinceridade (ou ‘sincericídio’), disse o seguinte[5]: “a gente deve entrar em abril e iniciar a subida rápida, e isso vai durar os meses de abril, maio e junho, quando ela vai começar a ter uma tendência de desaceleração. No mês de julho deve começar o platô. Em agosto o platô vai começar a mostrar tendência de queda e aí a queda em setembro será profunda, tal qual a de março na China”. Essa previsão estava relativamente correta àquela altura. Mas, o sistema de saúde não entrou em colapso em “abril”, como ele previa (com exceção, talvez, de cidades como Manaus e São Luís).

Também tive a oportunidade de escrever, naquela mesma coluna, outra verdade nua e crua dita pela Chanceler Angela Merkel[6], ao anunciar aos seus cidadãos que “70% das pessoas na Alemanha serão infectadas”, porque, passada a primeira onda de contágio, outras ondas viriam, de modo que a imunização da população ocorreria em algum momento pelo próprio contato com a doença. Isso, é claro, se antes não vier a ser criada uma vacina eficaz. Ou seja, não havendo vacina, ocorrerá a ‘imunização de rebanho’.

Tornei ao tema da pandemia em 15/05/2020[7], quando trouxe dados mais atualizados pela COVID-19, apontando que, numa conta aproximada, “teríamos uma taxa de mortalidade de 0,5% da doença no Brasil”. E ainda escrevi outra coluna em 22/05/2020[8], abordando as consequências econômicas da pandemia, bem como o desgoverno que move nossas quarentenas municipais e estaduais aqui no Brasil (quase todas ineficazes, infelizmente).

Agora, volto a escrever sobre o coronavírus, de modo a fazer uma espécie de update das assertivas acima colacionadas. E o faço com base em duas excelentes matérias produzidas pela Revista Super Interessante, na sua edição de Junho, e outras publicações. Vejamos.

Em primeiro lugar, devemos ter clareza de que, na melhor das hipóteses, uma vacina eficaz, produzida em larga escala, somente estará disponível em meados de 2021, isso num cenário otimista[9] (e aqui sequer se computa o desafio logístico que seria preciso para levá-la a todos os lugares do planeta, o que toma outro tanto de tempo). A vacina mais rápida já desenvolvida pelo homem, até hoje, levou 4 anos para ficar disponível[10]. Então, estamos falando de um esforço global que faria esse tempo ser reduzido em 75%. Assim, teremos ainda um ano de circulação do coronavírus pelo mundo, na melhor das hipóteses!

Considerando então que não será possível manter a população em casa até lá, por razões óbvias, precisamos analisar os dados dessa circulação mais ‘otimista’, que considera uma vacina para meados do ano que vem. Conforme nos adverte a Super Interessante[11], num cenário em que não haja vacina: OU o país já atingiu a chamada ‘imunidade de rebanho’ (com cerca de 60% da população infectada) OU o vírus está apenas suprimido, e pode ser reintroduzido se a quarentena afrouxar (as chamadas segunda e terceira onda).

Mesmo que um país tivesse um sistema de saúde impecável, médicos à vontade e leitos infinitos, a letalidade da Covid-19 ainda ficaria entre 1% e 0,5%… Ou seja: no Brasil, se 60% da população fosse infectada, no melhor cenário (0,5% de óbitos), teríamos pela frente no mínimo 600 mil mortes. Nos EUA, 900 mil mortes. Na Itália, 180 mil. Como a curva na Itália já está caindo, e eles têm 34 mil mortos, é evidente que a queda não pode ser atribuída à ‘imunidade de rebanho’. O que salvou o dia foi mesmo a quarentena.

De outra banda, aqui no Brasil, o famoso ‘pico’ agora está previsto para ocorrer em julho[12]. Quer dizer, ainda temos uns 30 dias de subida aguda dos casos e mortes até lá. Porém, essa é uma previsão nacional. E como o país é continental, a má notícia é que há Estados em diferentes estágios da doença. A Revista Exame[13] trouxe um estudo que aponta que: o Amazonas terá seu pico em 3 de julho, São Paulo em 10 de julho e a Bahia em 16 de julho (os três que seriam mais afetados segundo a publicação). Enquanto isso, Rio de Janeiro e Minas Gerais devem atingir seus picos somente em setembro

Ora, não será possível manter uma quarentena (ao menos uma eficaz) até meados do ano que vem! Então, o coronavírus vai circular bastante aqui no Brasil, até porque teremos ao menos uma nova onda até lá (a segunda). Aliás, as bolsas no mundo já estão reagindo à provável segunda onda nos países do hemisfério norte[14], que parece se avizinhar[15]. O diretor-regional da OMS para a Europa, Hans Kluge disse[16], no dia 03/06/2020, que “a humanidade terá que conviver com a infecção por um tempo, pois ainda não há data para uma vacina”; e que “a segunda onda não é inevitável, embora cada vez mais países estejam flexibilizando as restrições; há um risco claro de ressurgimento da infecção”.

Então, caro leitor, de duas uma: ou eu caí no rol daqueles que se perderam no desalento ou todos os dados reunidos me levam a crer que teremos que conviver com essa pandemia, ininterruptamente, até o advento da vacina (em meados do ano que vem), ou até que haja uma imunização de rebanho (até o final do próximo ano, ou até meados de 2022).

Se o que vier primeiro for uma ‘imunização de rebanho’, os cálculos indicam 600 mil mortos no país, no “melhor” cenário… e mesmo que venha uma vacina, ainda teremos que enfrentar uma segunda onda (ou segundo ‘pico’) da doença no Brasil. Então, digamos que morra um terço disso: ainda seriam 200 mil mortos!! É uma fábula de gente…

Também fico me perguntando o seguinte: como é que vamos pagar os R$600,00 até meados do ano que vem? além de prorrogar tributos de empresas e liberar empréstimos garantidos pelo Tesouro para pequenas, médias e grandes empresas nesse interregno? fora os gastos com a pandemia em si (em saúde e searas correlatas)? A economia do país também vai perecer num cenário desses, sem sombra de dúvidas! Podemos até ligar as máquinas de imprimir dinheiro e ‘barrigar’ a falência do Estado. Mas, ele vai quebrar em algum ponto no futuro (relativamente breve). Enfim, é um duro choque de realidade

Referências:

[1] http://ricardodantas.blog.br/coronavirus/

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/06/09/oms-transmissao-de-covid-19-por-pacientes-assintomaticos-esta-acontecendo

[3] https://jovempan.com.br/noticias/mundo/oms-se-desculpa-hidroxicloroquina.html

[4] http://ricardodantas.blog.br/torrentes-de-odio-e-medo/

[5] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,em-abril-o-sistema-de-saude-entrara-em-colapso-diz-mandetta,70003241718

[6] https://veja.abril.com.br/mundo/coronavirus-70-das-pessoas-na-alemanha-serao-infectadas-diz-merkel/

[7] http://ricardodantas.blog.br/na-pandemia-uma-postura-estoica/

[8] http://ricardodantas.blog.br/covid-19-mitigacao-e-consequencias-economicas/

[9] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,na-corrida-pela-vacina-para-covid-19-apenas-um-estudo-esta-na-fase-de-testagem-macica,70003331766

[10] https://super.abril.com.br/sociedade/eua-x-china-a-guerra-pela-vacina/

[11] https://super.abril.com.br/especiais/a-matematica-da-pandemia/

[12] https://veja.abril.com.br/saude/covid-19-pico-de-casos-no-brasil-sera-no-inicio-de-julho-diz-estudo/

[13] https://exame.com/ciencia/pico-da-covid-19-no-brasil-sera-em-julho-diz-estudo/

[14] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/risco-de-segunda-onda-de-coronavirus-nos-eua-faz-bolsas-globais-tombarem.shtml

[15] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2020/06/11/europa-teme-segunda-onda-precoce-do-coronavirus-apos-protestos-em-massa.htm

[16] https://noticias.r7.com/saude/oms-segunda-onda-da-covid-19-e-ameaca-real-mas-pode-ser-evitada-03062020

FOTO: https://www.google.com/search?q=coronavirus&rlz=1C1GCEA_enBR815BR815&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwiV0vLQ7vzpAhWAELkGHVEiCQUQ_AUoA3oECCMQBQ&biw=1366&bih=608#imgrc=ueoFEcvB-rCMiM

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado