Eleições (e seus eleitos) são um tema que tende a ser bastante passional, seja aqui em terras Tupiniquins seja nas terras do Tio Sam. Até entendo que assim o seja, afinal, o debate fica num campo próximo àquele da religião ou do futebol. Ocorre que avaliar a política sob essa perspectiva turva a visão do analista. Quer dizer, é preciso distinguir aquilo que é torcida daquilo que é análise, sob pena de entrarmos no campo do nonsense.

Em sua brilhante coluna, publicada em 08/11/2020 na Folha de São Paulo[1], Luiz Felipe Pondé escreveu que: “a ideia de uma política majoritariamente racional é uma lenda. Nossa relação com a política é mediada por estruturas passionais. Levemos a sério a ideia de que a racionalidade, na espécie, seja uma evolução tardia e não plenamente bem-sucedida”. Concordo com o filósofo – a racionalidade neste campo não é algo majoritário, mas, obviamente, existe. E, como ele bem frisou, haverá o dia em que será parte de nossa bem-sucedida evolução. Caso contrário, tal evolução não será completa!

Pois bem, o pleito americano já está acabado e decidido, ainda que Trump vá se utilizar de todos os recursos jurídicos cabíveis. Joe Biden foi eleito o 46º presidente dos Estados Unidos. Mas, ao contrário daquilo que os institutos de pesquisas pregavam, e que os veículos de mídia propagavam, a coisa foi bastante apertada por lá. Para dar uma ideia: independentemente do sistema de ‘delegados’ que ali funciona, teremos um cenário final com 25 Estados para cada candidato, de um total de 50. Enfim, algo que nos EUA costuma acontecer, mas que, vinha sendo dito, insistentemente, não iria acontecer desta vez…

Chama a atenção, neste pleito, que o recorde de votação até ali existente foi duplamente batido – em 2008 o democrata Barack Obama recebeu 69,4 milhões de votos – e nesta última eleição Biden teve, até 09/11/2020[2], 75.627.694 votos, enquanto Trump teve 71.058.213 votos. Isso indica que as pessoas quiseram muito exercer o voto, ainda que votar, por lá, seja facultativo. E mesmo com participação em massa, a diferença ficou em apenas 6%. Basta dizer que Trump teve cerca de 8,1 milhões de votos a mais do que ele havia conseguido em 2016, mas, mesmo assim, perdeu as eleições para Joe Biden.

Ilustre leitor, Trump é um sujeito que exala arrogância, não se esforça para combater posturas racistas ou misóginas, além de ter se postado como um negacionista diante da pandemia de COVID-19. Enfim, obviamente, não corresponde à altivez que um cargo de presidente da república exige e, talvez, por isso mesmo, não tenha sido reeleito. As coisas são assim: políticos ganham e perdem eleições – onde há democracia, claro! Mas, daí a achar que 71.058.213 americanos são completos idiotas, vai enorme distância. Não se pode analisar o governo Trump exclusivamente com base nas bobagens que ele fala…

No campo econômico, para pinçar algo mais distante da ‘pauta de costumes’, os EUA iam muito bem antes da pandemia, conforme reportagem e gráficos da BBC Brasil[3] – durante os primeiros três anos da presidência Trump houve um crescimento econômico médio 2,5% do PIB; o mercado financeiro (índice Dow Jones) bateu recorde histórico no início de 2020; em fevereiro deste ano, a taxa de desemprego era de 3,5%, a menor em mais de 50 anos; os salários dos trabalhadores, em valores reais (ajustados pela inflação), cresceram significativamente durante os primeiros três anos de Trump na presidência; além do que a taxa de pobreza lá registrou uma baixa histórica no ano de 2019. E, por que então Trump perdeu as eleições? Porque tudo isso foi para o ‘espaço’ quando veio a pandemia. É uma visão simplista? Claro! Mas, é praticamente impossível um presidente ser reeleito se a situação econômica estiver degringolada – e em qualquer parte do globo.

De outra banda, para quem acredita que Biden é uma pessoa ‘de esquerda’, não existe nada mais equivocado que tal afirmação (apesar de Trump ter insistido em sua campanha que Biden seria um ‘comunista’ – algo fake). Biden representa a centro-direita americana.

O jornalista americano Glenn Greenwald, que ficou conhecido no Brasil depois de divulgar conversas interceptadas da Operação Lava-Jato, ocorridas entre o juiz Sérgio Moro e os procuradores federais, pediu demissão[4] ao ‘The Intercept’, do qual era cofundador, justo porque pretendia publicar artigo (que foi vetado pelos editores) com e-mails interceptados de Biden e seu filho, supostamente com conteúdo comprometedor contra ambos, em operações ilícitas junto aos ucranianos. Gleen Greenwald ainda disse, em uma recente entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de São Paulo[5], que: “a percepção da esquerda brasileira sobre Joe Biden está completamente errada”; tendo acrescentado: “política não é sobre quem você gosta como ser humano. Biden tem 50 anos no poder, e é muito claro o que ele vai defender, qual ideologia vai implementar. Ele não é Lula, não é Evo Morales, não é contra a guerra, não é socialista”.

Enfim, caro leitor, Biden ganhou por razões que dizem respeito ao cenário americano e que estão muito longe de ser ele ou não ‘um ser humano louvável’… Ganhou por razões mais econômicas e relacionadas à pandemia do que qualquer outra coisa, pode ter certeza. E ainda que seja Biden infinitamente mais progressista do que Trump, ele está longe da visão de ‘progressista’ que temos aqui no Brasil, mormente sob a perspectiva econômica.

Digo isso para tentar desmistificar aquela ideia corrente de que as urnas da eleição americana consagraram o ‘bem’ sobre o ‘mal’. Isso é analisar a política com base nos mesmos fundamentos que me fazem um torcedor do Corinthians… Quer dizer, temos que ser racionais e não passionais quando nos propomos a enteder a roda da história.

Aproveitando o gancho e trazendo a questão para o nosso Brasil: é óbvio que Bolsonaro será afetado negativamente pela vitória de Biden. Primeiro porque há a tendência de que os EUA voltem ao Acordo de Paris e, com isso, passem a ecoar a pressão da Europa sobre o Brasil, no que diz respeito às questões ambientais. Ademais, como a pauta de costumes mais conservadora deixará de ser premente nos EUA, isso tende a esvaziar a extrema direita no mundo – inclusive no Brasil, por óbvio! Dentre muitos outros impactos.

Sucede que o pleito brasileiro de 2022 para a presidência da república estará calcado, também, mais em questões econômicas do que nas demais, bem como seguirá em pauta o tema ‘corrupção’. E o atual Governo vai ter que lidar não só com a herança de déficts fiscais, mas, ainda, com os gastos extraordinários decorrentes da COVID-19. Quer dizer, Bolsonaro não vai ter dinheiro para investir em absolutamente nada, terá boletos para pagar (e muitos!![6]) – a não ser que fure o teto de gastos e exploda de vez nossa dívida, barrigando a falência estatal para depois de 2022. E olha que esse cenário está cada vez mais debatido e aclamado em Brasília/DF, pelo Governo e o Centrão!! Já no campo do ‘combate à corrupção’, igualmente, o atual Governo está em maus lençóis. Isso porque pululam diuturnamente notícias relacionadas às ‘rachadinhas’ no núcleo familiar do presidente (inclusive em seu próprio gabinete, enquanto ainda era parlamentar).

Mais: ao contrário do que imagina a esquerda, aquela parcela da população que chama de ‘gado’ não é tão grande assim. Na verdade os eleitores fiéis de Bolsonaro correspondem a no máximo 1/3 do total – mesma cifra que compõe os eleitores de Lula, historicamente. Então, se não chegar rachada e brigando entre si (como vem fazendo desde 2018, pelo menos), a esquerda terá chances reais de ganhar – basta não tratar os eleitores da meiúca, que ora votam com a esquerda ora não, como completos idiotas… Há ainda outsiders como Luciano Huck. E há Sérgio Moro, que apesar de muito controverso, aparece hoje como o queridinho de várias siglas, na qualidade de ‘vice’. Isso sem contar os políticos, propriamente ditos, como é o caso de João Dória e de Luiz Henrique Mandetta.

Enfim, a eleição será decidida no Brasil, daqui a 2 anos, menos com base no ‘bem contra o mal’, como a mídia já quer fazer crer, e mais com base nas questões cotidianas, relacionadas ao emprego e renda. Isso porque os ídolos, os mitos, também perdem eleições – uma hora, no mínimo, eles deixam de ser candidatos! Então, convém aos partidos (que se pretendem mais perenes) fazer a leitura correta do eleitorado brasileiro. Existem razões muito mais pragmáticas para que alguém dê seu voto a um candidato do que gostar ou não dele, ser ou não conservador / progressista, ter ou não idêntica religião, p.ex. O atual Governo tende a perder no próximo pleito, mas, pelas outras razões expostas.

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado