Apesar dos trágicos números da COVID-19 no país, que ceifou quase 100 mil vidas de nossos compatriotas até aqui e que não dá sinais de que vá esmorecer (ao menos até que tenhamos uma vacina), é preciso planejar o Estado Brasileiro para além dessa crise sanitária (e econômica). Quero dizer, os problemas estruturais do país ficaram em stand by desde março, mas, além de não terem desaparecido, vão cobrar seu preço em muito breve. Assim, convém que Governo e Congresso Nacional retomem urgentemente uma agenda de reformas. E aqui me refiro às reformas administrativa, tributária e política.

O ano de 2019 foi um importante marco no que diz respeito à aludida agenda reformista. Após décadas, finalmente foi discutida, votada e aprovada uma reforma da previdência. As novas regras entraram em vigor em 13 de novembro, com a publicação da Emenda Constitucional nº 103 no Diário Oficial da União[1]. Não foi a reforma ideal, mas, foi muito positiva para os cofres públicos da nação. Isso porque ela vai gerar uma economia de cerca de R$800 bilhões ao país em 10 anos. Trata-se de uma monstruosidade de dinheiro.

A reforma previdenciária fixou maior idade mínima (62 anos para mulheres e 65 para os homens) e mais tempo de contribuição (para conseguir 100% do benefício serão 35 anos de contribuição para mulheres e 40 anos para homens). Houve regras mais brandas para algumas categorias profissionais, como professores, policiais e trabalhadoras rurais.

O fato é que, para trabalhadores da iniciativa privada (contribuintes) e de municípios sem sistema previdenciário próprio, bem como para os servidores públicos federais, o valor de todas as aposentadorias não será inferior a um salário mínimo nem poderá ultrapassar o teto do Regime Geral da Previdência Social (atualmente R$5.839,45 por mês). Uma baita mudança, que reduz muitas aposentadorias ‘integrais’, cujo custeio estava longe de garantir um regime geral superavitário. Claro, faltou incluir os servidores públicos dos Estados Federados (a PEC nº 133/2019, que versa sobre isso, foi aprovada no Senado e está aguardando aprovação na Câmara), além de todos os militares das forças armadas.

Importante mudança foi a alteração das alíquotas de contribuição, que antes eram quase ‘fixas’ (variavam de 8% a 11%) e passaram a ser progressivas, ou seja, quem ganha mais paga mais. Ela começa em um salário mínimo (7,5% de contribuição) e segue escalonada até aqueles que ganham acima do teto constitucional (22% de contribuição).

Ocorre que essa era uma das ‘pernas’ do descontrole de gastos federais no Brasil. A outra está justamente na máquina em si, ou melhor, no valor pago aos servidores públicos em geral. Conforme se vê no gráfico abaixo, em 1995, os gastos previdenciários foram de R$32,5 bilhões, e em 2018, foram de R$587,70 bilhões – um aumento de 1.580% em 23 anos, que dá uma média 13,4% de crescimento ao ano, contra uma inflação média de 6,32% ao ano. Essa era, portanto, a principal despesa. Já os gastos com funcionalismo público aparecem em segundo lugar: em 1995, primeiro ano de FHC, os gastos com servidores públicos terminaram o ano em R$38 bilhões e, ao final de 2018, quando Temer deixou a Presidência, esta rubrica estava em R$294 bilhões – detalhe, todos os governos aumentaram – e muito – os gastos do Governo Federal com servidores: FHC (+10,2% ao ano), Lula (+10,7% ao ano), Dilma (+7% ao ano) e Temer (+7,6% ao ano). Vejamos:

No site[2] de onde extraí o gráfico acima há muitas outras análises interessantes a respeito.

O Banco Mundial divulgou um abrangente e detalhado relatório[3] sobre o setor público brasileiro. Entre os 53 países pesquisados, o Brasil é o que apresenta a maior diferença entre o salário de um funcionário público federal e o de um trabalhador da iniciativa privada, ambos com a mesma idade, a mesma formação e a mesma experiência profissional: a diferença é de impressionantes 67% (sessenta e sete por cento)! No resto do mundo, o setor público paga (em média) apenas 16% a mais que o setor privado. Ou seja, a situação brasileira simplesmente não tem par, conforme adverte o site da Organização Mises Brasil[4], que veiculou o referido relatório do Banco Mundial.

O gasto do país com funcionários públicos é superior a 13,5% do PIB. Trata-se também do maior percentual entre todos os países analisados. Muito acima de países como Portugal, França, Austrália e EUA, onde o gasto do governo com funcionalismo público é de aproximadamente 9% do PIB. O Brasil gasta 45% a mais que os países mais ricos com seus funcionários públicos. E o pior: considerando todo o funcionalismo público federal, nada menos que 83% dos funcionários estão no topo da pirâmide da renda, compondo assim a parcela mais rica da população – sete em cada dez estão no grupo dos 10% mais ricos do país!

A questão é que tudo isso (previdência e custeio da máquina pública, principalmente) implicou numa situação de déficit fiscal crescente, que estava nos levando a um caminho inexorável de bancarrota, como atesta o gráfico abaixo (período de 2010 a 2019)[5]:

Apesar de nossas contas públicas estarem apresentando alguma melhora de 2016 para cá, com o advento da pandemia de COVID-19 (e seus gastos emergenciais), a expectativa é que o rombo fiscal só no ano de 2020 seja superior a R$900 bilhões[6]. É desolador! A dívida pública brasileira deve saltar para espantosos 98,2% do PIB[7]. Segundo o Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal, o resultado primário seguirá deficitário até 2030, sendo bastante provável que as contas retornem ao azul somente em 2033. Quer dizer, o superávit previsto para 2023 foi adiado em uma década pela pandemia. Significa que não há um dia sequer a perder quanto às reformas…

Assim é que a reforma administrativa urge! Não tem explicação o fato de o Governo ainda não ter enviado ao Congresso Nacional o texto-base que diz ter elaborado. Isso deveria ter sido feito ainda no 2º semestre de 2019. Mas, até agora, nada… O que se especula é que seus principais pontos devem abordar: a redução dos salários de entrada (que devem ficar mais próximos aos do setor privado) e a reestruturação da progressão para que o servidor só chegue ao teto no final da carreira; o fim da estabilidade de parte das carreiras; a drástica redução no número de carreiras do serviço público (hoje há mais de 300 carreiras, com cerca de 3.000 cargos); haveria também uma revisão nos benefícios, como o sistema de licenças e gratificações, além de acabar com a progressão automática por tempo de serviço e implantar um sistema de avaliação de desempenho mais rigoroso. Tudo isso conforme reportagem veiculada pelo site UOL[8].

E para evitar uma briga sem precedentes com a classe dos servidores, o que poderia inclusive inviabilizar a aprovação de uma reforma administrativa, o Governo pretende propor que essas regras valham apenas para os novos servidores públicos contratados. Com isso, espera-se que inclusive eles, como cidadãos brasileiros, adiram ao novo pacto.

De outro lado, mais do que reduzir seus gastos (que crescem em ritmo alarmante, como visto), o Brasil precisa reestruturar profundamente a forma pela qual obtém suas receitas. E isso atende pelo nome de reforma tributária. Nesta, o atual Governo parece estar se mexendo, embora tenha optado por fatiá-la. Vejamos.

A primeira fase da reforma tributária, apresentada no dia 21/07/2020, prevê a unificação do PIS e da COFINS em um tributo sobre valor agregado, com o nome de CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) com alíquota de 12%. No Parlamento já tramitam PEC(s) mais arrojadas, que propõem não só a unificação desses tributos federais, mas, igualmente a inclusão no pacote do ICMS (Estadual) e do ISSQN (Municipal), compondo o chamado IVA – Imposto sobre o Valor Agregado, como se faz na Europa e nos EUA.

Conforme reportagem do Infomoney[9], na segunda etapa da reforma tributária, a ideia é apresentar um desenho de revisão e transformação do IPI em um imposto mais seletivo, que incidiria sobre um conjunto de bens associados a externalidades negativas, como cigarros e bebidas alcoólicas. Já a terceira etapa mira modificar a tributação do Imposto de Renda para pessoas físicas e jurídicas. A ideia é reduzir a tributação sobre as empresas, instituir cobrança sobre dividendos e criar mecanismos para desestimular a ‘pejotização’ no mercado. Por último, viria um debate sobre a desoneração da folha de salários das empresas, uma demanda do setor de serviços, que se diz mais prejudicado pelas alterações propostas nas etapas anteriores. Hoje, o governo discute a criação de um imposto sobre transações financeiras para viabilizar a perda de arrecadação com a folha.

Assim, a questão no entorno da reforma tributária é muito mais ampla que a discussão midiática quanto à ressurreição ou não da finada CPMF. Para dar uma ideia do tamanho do problema que temos, por ano, são necessários 62,5 dias para que empresários paguem impostos no Brasil. Ou melhor, 1.501 horas são reservadas para fazer esses pagamentos, segundo dados do Banco Mundial, divulgados em reportagem da Folha[10]. O número é o maior entre todos os países analisados (no total são 190). Para dar uma ideia, o segundo lugar no ranking, a Bolívia, aparece distante, com 1.025 horas anuais. Na OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o clube dos países ricos no qual o Brasil pretende entrar, o tempo despendido com a tarefa é de meras 158,8 horas, ou 10,5% do que é gasto por aqui. Já na América Latina e Caribe, o período destinado para fazer o pagamento dos tributos é de apenas 317 horas por ano, ou 21% das horas reservadas por empresários no Brasil. Perceba o nonsense que é nosso sistema tributário.

Isso sem falar nas distorções meritórias dos tributos em si, que no nosso país punem a classe média, além de serem muito benevolentes com os mais abastados e representarem um fardo pesado demais sobre os mais pobres. Enfim, há muito o que se fazer nessa seara!

Por fim, como estou aqui abordando o ‘mundo dos sonhos’, sejamos otimistas (para não dizer utópicos): a cereja do bolo seria aprovarmos uma reforma política no país. Mas, como já me estendi demais nesta coluna, com relação a esse tema, convido você, leitor, a visitar outra de minhas colunas, veiculada em 03/04/2020[11], onde expus com mais vagar qual seria o ‘melhor modelo’ para abraçarmos. Resumindo: fim da reeleição, adoção do parlamentarismo e do voto distrital (pelo sistema de lista aberta), além de melhorar muito o regramento da fidelidade partidária e das cláusulas de barreira para sua criação.

Em suma, que venham as tão necessárias reformas! Chega de voos de galinha…

Referências:

[1] https://www.inss.gov.br/nova-previdencia-confira-as-principais-mudancas/

[2] https://www.mises.org.br/article/2941/eis-um-grafico-atualizado-que-assusta-e-deprime-a-evolucao-dos-gastos-do-governo-federal#:~:text=*%20Em%201995%2C%20os%20gastos%20previdenci%C3%A1rios,6%2C32%25%20ao%20ano.

[3] https://documents.worldbank.org/en/publication/documents-reports/documentdetail/884871511196609355/volume-i-s%c3%adntese

[4] https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2814

[5] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/01/29/no-6o-ano-seguido-de-deficit-contas-do-governo-registram-rombo-de-r-95-bilhoes-em-2019.ghtml

[6] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/06/15/instituicao-fiscal-ve-rombo-de-r-912-bi-nas-contas-publicas-neste-ano-e-volta-ao-superavit-em-2033.ghtml

[7] https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/07/02/governo-eleva-estimativa-de-rombo-fiscal-para-r-828-6-bilhoes-em-2020

[8] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/10/29/funcionalismo-servidor-reforma-administrativa-carreiras-estabilidade.htm

[9] https://www.infomoney.com.br/politica/reforma-tributaria-veja-os-principais-pontos-da-primeira-fase-da-proposta-do-governo/

[10] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/10/brasil-e-o-pais-em-que-empresario-gasta-mais-tempo-para-pagar-imposto-diz-banco-mundial.shtml

[11] http://ricardodantas.blog.br/a-politica-brasileira-carece-de-reformas/

FOTO: https://www.google.com/search?q=voo+de+galinha&rlz=1C1GCEA_enBR815BR815&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwiFi9HVronrAhUlHbkGHYy1DjEQ_AUoAXoECA0QAw&biw=1366&bih=657#imgrc=QjGf8LnBg7rmuM

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado