Os tempos estão difíceis no país: vivemos a maior pandemia global em 100 anos e temos um governo evidentemente inepto para lidar com isso (e com muitos outros pontos fundamentais). Ainda por cima, as pessoas estão empobrecendo rápido – segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, o número de pobres saltou de 9,5 milhões em Agosto de 2020 para mais de 27 milhões em Fevereiro de 2021[1]. Mais: como a pobreza acarreta uma fome consequente, estamos com dados estarrecedores, conforme o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado em 2021, pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN)[2] – do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões convivem com algum grau de insegurança alimentar sendo que, destes, 43,4 milhões não têm alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões enfrentavam a fome. É de se supor, portanto, que o nível de infelicidade esteja transbordando nos lares do país.

Sucede que, independentemente de quem é a culpa por tais números trágicos, ou seja, ainda que você seja apaixonado por Lula ou um apoiador entusiasmado de Bolsonaro, o fato é que não se pode brigar com uma estátua. Afinal, o monumento não poderá sequer se defender, muito menos revidar. Enfim, chegamos a um ponto em que mais que execrar pessoas vivas, passamos a odiar e cancelar pessoas mortas. Assim é quem quer se impor na base da violência: xinga pessoas nas redes sociais, às vezes o faz pessoalmente, noutras ameaça e, em última instância, agride. É como a lei do mais forte, que representa a antítese do propósito de termos um Estado.

O que quero dizer é: goste você ou não do seu Município, do seu Estado, da União ou do país, odeie você (ou ame) um ou diversos políticos que nos governam (seja no Executivo ou no Legislativo), concorde você ou não com as decisões do Poder Judiciário, é preciso obedecer as leis dali emanadas ou as decisões ali tomadas. Pode-se questionar a tudo e a todos, claro! Mas, não é possível sair no braço com seus desafetos, ameaçar quem pensa diferente ou pregar a completa anarquia. Afinal, numa anarquia prevalecem os mais fortes sobre os mais fracos sempre. E, justamente para evitar isso é que o homem criou o Estado – é uma grande ferramenta, algo que separa a atual civilização dos clãs do paleolítico. E isso deveria ser uma obviedade, afinal, quem de fato proíbe ameaças, agressões, mortes e coisas do gênero é o Código Penal.

Há três grandes questões envolvidas quando o que se discute é vandalizar estátuas: 1) O direito de expressão e de opinião – que dizer, poder protestar e contestar as ideias e atitudes emanadas da pessoa ou pessoas representadas por estátuas e monumentos; 2) O dever de, ao fazê-lo, usar dos meios adequados para tanto, que seriam passeatas, carreatas, panfletagem, textos, músicas, etc., de modo a mobilizar o Poder Legislativo para que se remova o objeto do espaço público; 3) Os fatos históricos, que por serem passíveis de interpretações subjetivas, às vezes podem comportar mais de um sentido possível, cada qual com seu pilar de sustentação argumentativa.

Veja bem, caro leitor, vou tomar aqui o exemplo mais recente, ocorrido no dia 24/07/2021, quando cerca de 20 pessoas incendiaram a estátua de Borba Gato no município de São Paulo[3]. Historicamente, Manuel de Borba Gato[4] (1649–1718) foi um bandeirante paulista. Iniciou suas atividades com o sogro, Fernão Dias Paes. Quando faleceu, em 1718, com 69 anos de idade, ocupava o cargo de juiz ordinário da Vila de Sabará. Sucede que o homem teve papel relevante, de um modo geral, na escravidão de índios e negros no Brasil no século XVIII. Ao que consta teria matado e escravizado muitas pessoas. Portanto, é um sujeito altamente controverso. Hoje podemos dizer, segundo nossa legislação vigente, que ele seria um torturador e/ou assassino.

Por esse motivo, mesmo que a legislação da época permitisse a escravidão de negros e indígenas, entendo que é muito legítimo que as pessoas hoje se sintam ultrajadas em razão desse fato histórico e, consequentemente, almejem retirar a estátua (que possui dez metros de altura e pesa vinte toneladas) da confluência da Av. Santo Amaro com a Av. Adolfo Pinheiro. Isso seria uma reinvindicação que me parece plausível. Talvez fosse o caso até de migrar a referida estátua para um museu relacionado àquele período histórico, ou para algum lugar que diga respeito à memória da escravidão no Brasil (um dos países que foi dos mais escravagistas do mundo) – quer dizer, um local que ensine as pessoas sobre esse período triste do nosso passado, para que as atuais e futuras gerações não tolerem (nunca mais!) tortura e escravidão.

Porém, convém lembrar que estátuas e monumentos só podem ser colocados em logradouros públicos com autorização do Legislativo correspondente. Quer dizer, a estátua de Borba Gato, inaugurada em 1963, na comemoração do IV Centenário de Santo Amaro, e que demorou seis anos para ser construída, somente foi ali instalada por autorização da Câmara Municipal de São Paulo – a obra integra o Inventário de Obras de Arte em Logradouros Públicos da Cidade de São Paulo, mantido pelo Departamento do Patrimônio Histórico. Assim, houve autorização por parte dos representantes eleitos à época (os vereadores), para que fosse posta naquele local. E isso é assim por uma razão simples: se todos pudessem pintar, esculpir e instalar suas criações nos logradouros públicos seria uma verdadeira balbúrdia. Então, a legislação preconiza os trâmites para que uma obra de arte seja alocada em espaços que pertencem a todos. Aliás, mesmo que o local seja privado (próprio ou alugado), há legislação regulando a instalação de monumentos e estátuas. Um exemplo é a ‘Estátua da Liberdade’ que normalmente é colocada na frente de lojas da Havan: aqui em Ribeirão Preto/SP o código de posturas não a permitiu[5].

Ora, se para instalar uma obra, como visto, há um procedimento, para removê-la também há outro. E ele igualmente passa pelo Poder Legislativo, na medida em que, uma vez instalado, aquele bem passa ao patrimônio daquele Ente Federado, ou seja, pertence ao patrimônio público e, portanto, é de todos os cidadãos daquela localidade. Então, no caso da estátua de Borba Gato, somente a maioria dos vereadores (em votação na Câmara) poderia determinar sua retirada. E isso porque: coubesse aos próprios cidadãos decidirem, ao seu bel prazer, bastaria que uma pessoa discordasse do monumento para que se sentisse no direito de incendiá-lo, por exemplo.

Como as coisas numa democracia, ou melhor, num Estado Democrático de Direito, não são determinadas pela escolha de 20 manifestantes (e nem de milhares ou milhões deles), mas, pelos Poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), é crime de dano qualificado atear fogo em estátuas e monumentos públicos. Se isso se der com emprego de fogo a pena é de detenção de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à eventual violência – conforme preconiza o artigo 163, inciso II, do Código Penal. Quer dizer, ao seu direito de expressão e de opinião corresponde o dever de, ao fazê-lo, usar dos meios adequados para tanto. Essa regra vale mesmo que o personagem retratado na obra seja um torturador e/ou assassino.

Amigo leitor, para além da questão jurídica, até aqui abordada, gostaria de propor uma reflexão psicológica e social. Hodiernamente as pessoas estão muito à flor da pele. Há muita intolerância de parte a parte. Me parece que, para além da discussão – “derrubada de estátuas: vandalismo ou reparação histórica?”[6]; ou “a destruição de monumentos como forma de protesto”[7] – cabe concluir que “derrubar todos os monumentos do mundo não muda o que aconteceu”[8], como bem pontuou David Blight, professor de história da Universidade de Yale, vencedor do Pulitzer e especialista em estudos sobre afroamericanos e a guerra civil, em entrevista à BBC Mundo.

Veja bem, caro leitor, basta dizer que a própria Igreja Católica foi altamente condescendente com a escravidão de índios e negros no Brasil até próximo à Proclamação da República. Como bem destaca artigo do prof. Sérgio Sezino Douets Vasconcelos[9], Igreja e Estado formavam quase uma unidade à época e há vários episódios e documentos mostrando a completa tolerância da Igreja com a escravidão, vejamos alguns: “já em 1557 o Padre jesuíta Manuel da Nóbrega escreve ao rei de Portugal pedindo o envio de escravos para trabalharem nos colégios”; “Dom João II ordenou que os escravos fossem marcados a ferroquente com o símbolo da coroa portuguesa como prova que o imposto real já havia sido pago na África. Esta mesma marca servia também como certificado do batismo cristão. Posteriormente Dom João IV substituiu a marca de ferro por uma argola pendurada no pescoço que continha o mesmo significado”. Daí eu indago: isso dá o direito de sairmos por aí ateando fogo em Igrejas Católicas e seus símbolos?

Há diversos outros exemplos ao longo da história que comportam mais de um olhar sobre a mesma pessoa: 1) O grande físico e astrônomo italiano, Galileu Galilei[10], ao defender e divulgar a teoria de Nicolau Copérnico, no sentido de que a Terra se move ao redor do Sol, quase acabou queimado na fogueira da inquisição por heresia – à época era assente o entendimento de que o Sol girava em torno da Terra e Galileu só não foi morto porque se viu obrigado a renegar suas ideias através de uma confissão, lida em voz alta perante o Santo Conselho da Igreja; 2) Cristóvão Colombo[11], navegador e explorador genovês, foi o primeiro europeu a chegar nas terras do continente americano, chamado de ‘Novo Mundo’, em 1492. O projeto de Colombo era na realidade cruzar todo o Atlântico em direção à Ásia e assim vencer os monopólios comerciais da época – essa empreitada era encorajada pelos debates sobre a esfericidade da terra. Porém, Colombo também é acusado por diversos historiadores de iniciar e incitar o genocídio e repressão cultural dos povos nativos na América[12]; 3) Albert Einstein[13], físico teórico alemão que desenvolveu a teoria da relatividade geral, um dos pilares da física moderna (ao lado da mecânica quântica), tem em sua biografia um episódio pouco comentado: teria ele abandonado sua filha primogênita, Lieserl, nascida de seu relacionamento com Mileva em 1902, supostamente porque sua mãe não aprovava o relacionamento de ambos; 4) Wernher von Braun[14], engenheiro alemão, pioneiro e visionário das viagens espaciais, ficou mundialmente conhecido por ter liderado o projeto aerospacial americano durante a chamada ‘corrida espacial’, tendo trabalhado como projetista-chefe no desenvolvimento do foguete ‘Saturn V’, que levou os astronautas dos EUA à Lua, em julho de 1969. Suas ideias de propulsão são aplicadas até hoje e embasam o formato das missões que levarão o homem a Marte, num futuro próximo. Ocorre que von Braun também foi membro do Partido Nazista, tendo servido na SS durante a 2ª Guerra Mundial, quando foi responsável pelo desenvolvimento do foguete ‘V-2’, arma de ataque da Alemanha de Hitler; e, para terminar, um exemplo tupiniquim: 5) Getúlio Vargas[15], chamado por seus simpatizantes de ‘pai dos pobres’, pela legislação trabalhista e políticas sociais adotadas sob seus governos (cujo crédito maior é o estabelecimento da CLT, em 1941), também foi um implacável ditador, entre 1937 e 1945, durante o chamado ‘Estado Novo’, implantado após um golpe de Estado no Brasil.

Assim, é preciso ter em conta que a história tem suas nuances. Sempre há mais de um prisma. E, claro, é possível se apegar somente àqueles mais tristes ou pouco humanos. As pessoas, de quaisquer épocas, acertam e erram (independentemente da intensidade e/ou frequência). Nós não somos alienígenas, mas, seres da mesma espécie!! Assim, convém compreendermos o passado, aprendermos com os equívocos cometidos e procurarmos evoluir. Para tanto, é preciso mirar naquilo que foi feito de positivo, nos bons exemplos e grandes feitos. Odiar e cancelar pessoas ou tentar apagar o passado não ajuda… Muito menos ficar por aí brigando com estátuas!

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado