No mês de março deste ano eu escrevi uma coluna intitulada “Chegamos ao Fundo do Poço?”[1]. E, logo no início transcrevi minha impressão, no sentido de que “o governo Bolsonaro está apenas no meio, mas, parece já ter acabado”… Ali eu argumentava apenas o óbvio – “o negacionismo do Palácio do Planalto está cobrando seu preço”.

Pesquisa do IPEC[2], divulgada agora no dia 25/06/2021, mostrou Bolsonaro com 23% das intenções de voto no primeiro turno para a corrida eleitoral de 2022, muito atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 49%. Segundo a mesma pesquisa, a reprovação a Bolsonaro avançou dez pontos percentuais de fevereiro para cá, passando de 39% para 49%. Já a aprovação de Bolsonaro recuou de 28% para 24%. É sintomático.

Na verdade, Bolsonaro vendeu em 2018 que seria alguém que lutaria contra a corrupção. E que daria autonomia ao Ministério da Economia, liderado por Paulo Guedes, para tocar uma agenda liberal, com enxugamento do tamanho do Estado (reformas administrativa e previdenciária) e racionalização na cobrança de impostos (reforma tributária). Bradou que jamais abraçaria a “velha política”, encarnada na figura difusa chamada de “Centrão”.

Primeiro seu governo enfraqueceu o então Ministro Sérgio Moro, tirando dele importante mecanismo de monitoramento financeiro (COAF), que vinha sendo fundamental instrumento contra o crime do colarinho branco, especialmente a lavagem de capitais. Depois, quis nomear como superintendente da Polícia Federal um nome que tomava um cafezinho com ele. Quer dizer, alguém que não desse a ele e aos seus qualquer dor de cabeça. Percebendo tal desmonte, pulou fora Sérgio Moro. E saiu atirando, como sabido.

Depois, com o recrudescimento da pandemia, em meio à guerra que decidiu travar contra os Governadores e Prefeitos (e, por decorrência, contra o próprio povo), Bolsonaro se voltou contra os Ministros do STF. Foi ali que tomamos conhecimento daquela célebre reunião ministerial, onde se discutiu “passar a boiada” na seara ambiental, prender todos “os vagabundos” que atuam no Supremo e “armar a população para evitar o golpe”. A coisa ganhou tamanha dimensão política que, acuado e com a popularidade em queda, Bolsonaro decidiu que ficaria no cargo, às custas de seu matrimônio com o dito Centrão. E bradou durante uma das manifestações a que esteve presente: “acabou, porra!”.

Naquele mês de abril do ano passado eu escrevi que haveria mais um impeachment[3]. E isso parecia evidente, afinal, Bolsonaro estava rompido com o Congresso Nacional (que era comandado por Maia e Alcolumbre à época). Ele não havia abraçado o Centrão ainda, e estava se dedicando a comprar briga com o Poder Judiciário. Cheguei a escrever que o pedido de impeachment seria colocado para andar “logo que passasse o período agudo da pandemia”. Mas, após sua aliança com o Centrão, Bolsonaro se safou. Ademais, ainda não passou o período agudo da pandemia… hoje estamos com números bem piores do que os do ano passado inteiro. Mas, a tendência é que a pandemia arrefeça neste 2º semestre.

O governo não caiu, mas, deixou de cumprir a agenda eleitoral de 2018. Não houve uma reforma administrativa (e aquela apresentada não toca nos pontos centrais do problema). Não houve reforma tributária (o governo abandonou bons projetos que existiam e que já estavam com discussão adiantada no Congresso, para lançar alterações a conta gotas, que em nada contribuem para melhorar o manicômio tributário que temos). Sequer houve privatizações, tão propaladas na campanha de Bolsonaro nas eleições. Na verdade, a equipe de Paulo Guedes perdeu três dezenas de bons quadros do ano passado pra cá.

Então, restou o Poder pelo Poder ao presidente eleito. Algo que já vimos inúmeras vezes como funciona – o PT foi defenestrado nas eleições em 2018 justamente em razão disso! E Bolsonaro casou-se com os mesmos personagens… Quer dizer, com os ex-cônjuges políticos de Lula, Dilma e Temer. Nem preciso citar aqui os nomes de todos eles. Vou mencionar apenas um: Ricardo Barros (hoje do PP), líder do governo na Câmara dos Deputados desde agosto de 2020. Conforme excelente reportagem da Revista Piauí[4] de 25/08/2020, o homem foi líder de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), vice-líder de Lula (PT) e de Dilma Rousseff (PT), além de Ministro da Saúde de Michel Temer (MDB) – e não vê problema algum neste fato. Disse: “Qual o sentido disso?” [ser líder de diferentes governos] “O sentido é dar governabilidade ao governo que se elege. O nosso sistema é o presidencialismo de coalizão”. Enfim, esse é o resumo do nosso país, infelizmente!

Esse tipo de aliança cobra seu preço, como já frisei. Foi assim que o atual governo veio parar na pior avaliação dos eleitores, desde que se iniciou. E é assim que as chamas do impeachment estão sendo reacesas no Congresso Nacional, mormente depois que a circense CPI da COVID-19 achou um ‘veio de ouro’: os contratos da vacina Covaxin.

O site do UOL[5] trouxe extensa matéria sobre esse escândalo, que envolve o presidente pessoalmente (pois teria praticado, em tese, o delito de prevaricação). Mas, aqui deixarei no lugar o resumo proposto por Conrado Hubner, Professor de Direito da USP, em sua conta no Twitter[6]: “1- Ricardo Barros nomeou a servidora que autorizou o contrato irregular, quando ainda era Ministro da Saúde [de Temer]; 2- O Governo Bolsonaro recusou sistematicamente a compra de vacinas com eficácias mundialmente reconhecidas; 3- Ricardo Barros, líder do governo, incluiu emenda para permitir a compra da vacina indiana, que sequer havia sido aprovada pela Anvisa, em detrimento de vacinas já disponíveis; 4- Governo assina contrato de compra com a empresa indiana, por valor muito superior às demais e com eficácia bastante duvidosa até mesmo na Índia e recusada nos países mais desenvolvidos, mesmo alertado formalmente de tal fato pelo embaixador do Brasil na Índia; 5- A compra da vacina é intermediada por uma empresa nacional: a Precisa; 6- Ricardo Barros é réu em ação de improbidade com a sócia da mesma empresa; 7- Flávio Bolsonaro participou de reunião no BNDES acompanhando o dono da empresa Precisa, sem qualquer justificativa; 8- O contrato de compra da vacina é assinado e um servidor público verifica a ocorrência de fraude no invoice, que previa o pagamento adiantado a uma empresa que não integrava o contrato; 9- O irmão do servidor público, deputado federal da base do governo, participa de reunião presencial com Bolsonaro e o informa da fraude; 10- Bolsonaro imediatamente afirma que é ‘coisa do deputado federal Ricardo Barros, seu líder na Câmara, e que se mexer nisso vai dar merda’; 11- Presidente afirma que vai oficiar imediatamente a Polícia Federal, mas permanece omisso e o contrato continua vigente, não adotando nenhuma providência; 12- Desvio de mais de 200 milhões de reais, com transferência para offshore em Cingapura, somente não ocorre porque o servidor concursado se recusa a assinar e sofre grande pressão de superiores, nomeados pelo governo Bolsonaro, para efetuar o pagamento, mesmo alertado da ilegalidade; 13- Bolsonaro, então, determina que a Polícia Federal investigue o servidor e instaure procedimento administrativo em seu desfavor; 14- Durante depoimentos na CPI, Fred Wassef, advogado da família Bolsonaro, que defende Flávio no processo criminal da rachadinha e escondeu Queiroz, assessor parlamentar e operador de Bolsonaro e seus filhos em sua casa, mesmo afirmando em diversas entrevistas que não sabia onde ele estava, comparece para acompanhar pessoalmente a CPI; 15- Nesse meio tempo, mais de meio milhão de brasileiros de todas idades (…) morreram por ausência de vacina, porque o Governo recusou sistematicamente a compra com eficácia comprovada pelo valor de R$15,85 para adquirir vacina não aceita nem mesmo na Índia por R$75,25, com um único objetivo: enriquecer 200 milhões de reais; Ricardo Barros é desses que defende o nepotismo em nome da família: ‘o poder público poderia estar mais bem servido, eventualmente, com um parente qualificado do que com um não parente desqualificado’ – surprise, surprise: esposa nomeada em conselho de Itaipu”.

Mesmo que você não concorde com a linha de raciocínio esposada nos Twitters acima transcritos, caro leitor, convém no mínimo aceitar que a coisa toda cheira mal. Conforme excelente editorial do Jornal Estadão[7]: “A luz do sol acelera a putrefação do governo. É preciso desenterra o que a truculência bolsonarista quer esconder”. Essa é a questão que pode virar a canoa de Bolsonaro e colocar a pique seu governo. Acompanhe de perto! Aliás, o Ministério da Saúde, por orientação da CGU, suspendeu o contrato da Covaxin[8].

Na esteira do que já esclareceu a Folha de São Paulo[9], em matéria do dia 25/06/2021, o Centro vê Bolsonaro derretendo e oposição vai explorar caso Covaxin para impeachment. Segundo a reportagem, lideranças veem grande potencial de dano na crise que envolve o presidente e o líder de seu governo. Esse pode ser o combustível que faltava para que ande o processo na Câmara dos Deputados, como quer a oposição há tempos. Isso, aliado às pesquisas de votos apontadas (onde Bolsonaro tem só 24% de aprovação e Lula tem 49% das intenções de voto nas eleições de 2022) e às crescentes manifestações contra o governo, pode levar ao maior furo possível no casco: o desembarque do dito “Centrão”. E é isso que está prestes a ocorrer, segundo o site “OAntagonista”[10]. O Planalto desconfia até que foi Arthur Lira (PP) quem incitou Luís Miranda a atirar no governo[11]. A conferir…

A vida de Bolsonaro fica cada dia mais difícil, aliás. Novas revelações tornam menores as anteriores – a última é a de que cobrava-se um dólar de propina por dose de vacina[12]!!

Gostaria de frisar, a esse respeito, outro trecho da reportagem da Revista Piauí[13], acima aludida: um exemplo do modus operandi de Ricardo Barros que se deu em 2016, quando ele abandonou o governo Dilma. Em abril daquele ano, durante o processo de votação na Câmara da admissibilidade do pedido de impeachment da então presidente, Barros era vice-líder do governo (PT). Apenas na véspera da votação anunciou publicamente que se posicionaria em favor da tramitação do impeachment. Embora ainda estivesse no governo, nos bastidores Barros vinha negociando com o grupo de Temer e já era cotado para o Ministério da Saúde, caso Dilma fosse deposta – o que acabou ocorrendo.

Enfim, como escreveu Fernando Gabeira[14] sobre o presidente: “vendo sua margem de manobra se estreitar, ele parece cada vez mais desesperado, a ponto de agredir verbalmente jovens repórteres no exercício de sua função”. Acontece que não é possível anular o pacto com o Diabo na base do grito. Então, Bolsonaro pode chorar no travesseiro!

Entretanto, mesmo que nada aconteça e o atual governo apenas deixe o Planalto nas eleições de 2022, o estrago já está feito, afinal, Bolsonaro já é (e seguirá sendo) o maior cabo eleitoral de Lula. Não só deixaram as sombras aquelas figuras da ultradireita que têm ideias medonhas, como elas trouxeram consigo uma horda de gente que jura de pés juntos que nenhum malfeito ocorreu nos governos petistas! São coisas inacreditáveis de tão parecidas, infelizmente. É como se aqueles que não são eleitores de ambos estivessem no cenário descrito no “Ensaio sobre a Cegueira” do escritor português José Saramago.

Referências:

[1] http://ricardodantas.blog.br/chegamos-ao-fundo-do-poco/

[2] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-tem-49-das-intencoes-de-voto-e-bolsonaro-23-aponta-pesquisa-ipec,70003758413

[3] http://ricardodantas.blog.br/acabou-mais-um-impeachment/

[4] https://piaui.folha.uol.com.br/um-lider-faminto/amp/?__twitter_impression=true

[5] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/06/26/o-que-se-sabe-sobre-a-crise-das-vacinas-e-a-covaxin-no-governo-bolsonaro.htm

[6] https://twitter.com/conradohubner/status/1408764847769128971?s=21

[7] https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,putrefacao-moral,70003758255

[8] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/06/29/queiroga-anuncia-suspensao-de-contrato-para-compra-da-vacina-covaxin.htm

[9] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2021/06/centro-ve-bolsonaro-derretendo-e-oposicao-vai-explorar-caso-covaxin-para-impeachment.shtml

[10] https://www.oantagonista.com/despertador/centrao-prepara-o-desembarque/amp/

[11] https://noticias.uol.com.br/colunas/tales-faria/2021/06/29/planalto-desconfia-de-que-arthur-lira-incitou-luis-miranda.htm

[12] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/exclusivo-governo-bolsonaro-pediu-propina-de-us-1-por-dose-diz-vendedor-de-vacina.shtml

[13] https://piaui.folha.uol.com.br/um-lider-faminto/amp/?__twitter_impression=true

[14] https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,bolsonaro-no-seu-labirinto,70003758208

FOTO: https://www.google.com/search?q=acabou+porra&rlz=1C1GCEA_enBR918BR918&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwiWmbehzb3xAhWPqZUCHZQqBAIQ_AUoAnoECAEQBA&biw=1366&bih=657#imgrc=0iAck8eUmB-QOM

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado