Há coisas que são espantosas! Tenho visto algumas delas com clareza solar nos últimos tempos. Comecemos por algo óbvio de tão paradoxal: manifestação a favor do “AI-5”! O mais duro de todos os Atos Institucionais, emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva em 13/12/1968, que resultou na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, intervenções ordenadas pelo Presidente nos Municípios e Estados e também na suspensão de quaisquer garantias constitucionais, como, por exemplo, o direito de manifestação, hoje previsto no artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal.

Em resumo: as pessoas foram às ruas pedir que seja instituída alguma norma que proíba, dentre outras coisas, o direito de manifestação livre e pacífica nas ruas. É incrível, não?

O presidente Bolsonaro esteve presente, porque sim, gosta do período ditatorial e não esconde isso. Mais: já jactou-se da tortura como método de combater “vagabundos”, além de elogiar notórios torturadores dos anos de chumbo. Mas, esteve presente ao ato, nesta última ocasião, porque discorda do isolamento social decorrente da pandemia.

Quer dizer, ele, que não concorda com as orientações da OMS, foi à manifestação de ontem como foi a todas as manifestações anteriores. Os manifestantes, que representam a nata da ultradireita nacional, receberam-no como um ídolo. Havia faixas pedindo a volta do AI-5. Outras pedindo o fechamento do Congresso e também do STF. Então, o Presidente subiu na caçamba de uma caminhonete e discursou para os presentes.

Pode-se dizer que o Presidente, em razão desses atos ou pensamentos, faz valer uma série de adjetivos que lhes são imputados. Mas, a questão é: ele não disse ali, no seu discurso, nenhuma palavra sobre fechar o Congresso, o STF, nem mesmo incitou algo no sentido de calar a imprensa. Mas, o fato de ter comparecido ao evento incendiou o país. A coisa tomou ares de que há um golpe em curso, fomentado pelo Presidente. Ou seja, um golpe militar. Isso já estaria em fase adiantada, conforme nos alertam na TV.

Mas aí está outro paradoxo, não menos sensacional: os militares já estão no Poder! Então, na verdade, a ideia seria tirar os poderes das demais instituições para concentrá-los no Executivo – até aí a grita tem uma linha de raciocínio coesa. Mas, qual seria a forma de impedir que esse “golpe” seja concretizado? Simples: Maia vai aceitar um pedido de impeachment e colocá-lo para andar logo que passar o período agudo da pandemia. Será afastado do cargo Bolsonaro, por 180 dias. Entretanto, antes disso, o Senado Federal, comandado por um correligionário de Maia, David Acolumbre, vai sacramentar o impeachment. Teremos entregue então o Poder ao vice-Presidente, Hamilton Mourão. Opa, mas espera aí, não seria ele General da reserva do Exército?

Seria o curioso caso em que, visando evitar um golpe militar, far-se-á o impeachment do Presidente eleito para entregar o Poder aos militares… É a gloriosa operação ganso!!

A verdade é que somos ruins em aceitar a democracia. Quando o resultado das eleições implica na discordância daquilo que pensamos com relação àquele que governa é um inferno. Se você é contra o “isolamento vertical”, contra os “militares”, contra o “politicamente incorreto”, contra o “desmatamento”, as “queimadas”, está difícil viver no Brasil hoje.

Acontece que governos são eleitos justamente porque não inventaram ainda uma forma melhor de se exercer a democracia do que a eleição direta e universal. Isso não garante que serão bons os governantes eleitos, muito menos agradáveis. Mas, funciona assim.

Ocorre que quando o Legislativo decide que não está bom, arruma motivos para desdizer o que disseram as urnas. Já fizeram isso com Dilma Rousseff. Agora, farão mais uma vez, com Jair Bolsonaro. Acabou! Isso já está precificado. Inclusive há apoio de boa parte da imprensa nesse sentido. Como havia, de resto, quando cassaram Dilma.

Enfim, a opinião externada nas urnas, atualmente, no nosso país, não serve de nada!!

Vamos ter um General da reserva no Poder até o fim de 2020. Se a pandemia deixar.

Ademais, teremos a reeleição de Rodrigo Maia para a Presidência da Câmara. Será a terceira desde 2016. David Alcolumbre igualmente será reconduzido à Presidência do Senado. O Poder é muito sedutor. As pessoas não gostam de deixá-lo espontaneamente.

Ocorre que a pergunta que fica é a seguinte: para que o impeachment funcione é preciso combinar com os “russos” né? No caso, é preciso ter o aval da caserna nacional. Então, serão os militares a favor do “golpe” ou do “contragolpe”? Ninguém ainda sabe!

Derrubar presidentes deveria ser algo minimamente sério. Claro, eu sei que é um julgamento político. Mas, não poderia constituir uma espécie de “moda”… Ah, esse aí ganhou mas é meio ruim… vamos trocar! Fico me perguntando atônito: o que é que se resolverá com esse impeachment? A pobreza de milhões de brasileiros? A falta de saneamento básico de quase metade da população? A corrupção de décadas e décadas? O déficit fiscal da União, que vai fechar 2020 perigosamente acima de 90% do PIB, em razão da COVID-19? A proteção ao meio ambiente? Outros problemas estruturais? Não.

Veja bem caro leitor: eleger a Dilma era a solução. Depois, derrubar a Dilma que era. Então, a solução era eleger Bolsonaro. Agora, temos que derrubá-lo, segundo nos advertem os portentos nacionais. Ficar contra o impeachment (que não significa endossar tudo o que diz e pensa Bolsonaro) é ser a favor do “golpe militar”, é nazismo…

A questão é que, por princípio, sou absolutamente contra a reeleição. Isso sim seria algo que preveniria golpes, corrupção sistêmica e o (neo)coronelismo a que assistimos no Legislativo nacional. Então, por decorrência lógica, sou contra os impeachments de representantes democraticamente eleitos, a não ser que seja algo muito fora da curva.

Bolsonaro não tem governado o país por muitos motivos. Claro que ele conflagra a relação com o Legislativo desnecessariamente. Mas, quebrou algo muito enraizado no país: a conivência, ou melhor, o compadrio entre Executivo e Legislativo. Algo que era mantido com o cofre público, onde se depositam os tributos que você e eu pagamos. Ali estava e sempre esteve ancorada a “base de governo”. De qualquer governo até aqui.

O desmame do Legislativo não tem sido fácil. Então, veio o orçamento impositivo. Depois, as emendas impositivas. Criaram até um orçamento de 30 bilhões que ficaria a cargo apenas dos parlamentares. Quer dizer, não seria preciso sequer negociar com o Executivo agora. Percebam que as falhas morais, portanto, não irradiam apenas do Presidente. Há ainda questões impublicáveis que envolvem a nomeação e a conduta no STJ e no STF.

Podemos, enfim, concordar com os arautos da moralidade, da ética e da boa conduta. Ficar do lado dos descolados e apoiar o impeachment. Mas, teremos que arcar com as consequências. Ocorrerão eleições livres em 2022? Acredito que sim! O próximo Presidente do Brasil vai conseguir terminar o mandato, é provável que não, afinal terá uma dívida impagável para administrar – isso aliado a Estados e Municípios quebrados.

Não escrevo para convencê-lo a defender Bolsonaro, entenda! A ideia é que façamos funcionar a democracia. No Brasil, ela não está funcionando. De todo modo, o atual governo acabou! Não há relação direta, ao contrário, mas, pensei aqui no saudoso Morais Moreira, porque parece que estamos numa discografia dos Novos Baianos: “É Ferro na Boneca” (1970) e, depois, “Acabou Chorare” (1972). É melhor aceitarmos.

Referências:

FOTO: https://www.google.com/search?q=bolsonaro+discursa+em+frente+ao+qd+do+ex%C3%A9rcito&rlz=1C1GCEA_enBR815BR815&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwik2-PPw_foAhVkA9QKHeP2CPcQ_AUoAnoECAsQBA&biw=1366&bih=657

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado