Vivemos tempos estranhos. As pessoas hoje têm muita dificuldade de abstrair: de parar, analisar as nuances e de pensar, antes de emitir uma opinião. Enfim, o ser humano se tornou demasiado concreto, duro. E, por isso mesmo, as pessoas estão mais implacáveis, julgadoras de seus irmãos. São vastíssimos os exemplos de “cancelamentos” nas redes sociais, para ficar num exemplo prático muito difundido hodiernamente. O sujeito pensou diferente de você, agiu de modo “errado”, está imediatamente cancelado. É um tipo de idade média, só que na era da inteligência artificial. Nós ficamos dogmáticos, estreitos. Enfim, nos apequenamos dentro da vasta criação divina. Uma pena!

Ora, mas, e você, Ricardo!? Por que raios está dando sua opinião então!? Não estás, também, julgando os outros!? Bem, pode até ser. Mas, na teoria do copo, que pode estar meio vazio, vamos ficar com a ótica do copo meio cheio. Estou escrevendo, depois de muito pensar, na esperança de que isso faça você, leitor, abstrair também… Quem sabe eu possa inspirá-lo nessa jornada.

Pois bem, depois dessa introdução bastante viajada, deixe-me tentar ser mais objetivo e explicar: os orientais têm consigo uma ancestral sabedoria, porque entendem a vida como algo composto por aspectos interligados. Os hindus, por exemplo, baseados no conhecimento védico, já diziam que nós, seres humanos, somos uma alma espiritual eterna que habita e dá vida a um corpo material. O livro Bhagavad-Gita[1], datado do século IV a.C., traz esse conceito dentro dos diálogos travados entre Krishna (Deus) e o herói Arjuna (humano) num campo de batalha. Sucede que essa verdade é muito anterior e remonta a tempos imemoriais (já consta inclusive de pinturas rupestres).

Bem, se temos em nós um ser abstrato, que se manifesta no mundo material, precisamos entender essa relação e seu propósito, ainda que você, ilustre leitor, não acredite que haja um Deus. Veja: Platão[2] acreditava que por de trás do nosso mundo, chamado “mundo dos sentidos”, existe uma realidade abstrata, chamada de “mundo das ideias”, onde tudo é perfeito e eterno – e nós só poderíamos chegar a este mundo, onde se encontra o verdadeiro conhecimento, por meio da razão.

Vejamos: o ser humano tem basicamente quatro formas/necessidades específicas de expressão – artística, científica, política e religiosa. Podemos multiplicar estas necessidades por outras, mas qualquer uma dessas outras conseguimos sintetizar dentro de algumas destas quatro. Esses são os quatro lados da pirâmide da sabedoria, segundo a filosofia egípcia, que alicerçam todo o conhecimento rumo à transcendência para o plano espiritual (vide imagem que ilustra esta coluna). Quer dizer, quanto mais se desenvolvem tais características, mais nos aproximamos do cume. Entretanto, a sabedoria depende de desenvolvermos, ao mesmo tempo, todos esses lados da pirâmide – ou nossa evolução ficará capenga, fazendo tudo ruir a certa altura da vida.

Pitágoras[3], filósofo grego eternizado por sua teoria acerca do triângulo retângulo (que tem tudo a ver com pirâmides), dizia que não era sábio, mas, um buscador de sabedoria, pois ele não a tinha. Se é assim, nada impede a nós, meros mortais, que não conversamos diretamente com Deus, como Arjuna, tentarmos buscar o conhecimento e, com isso, atingir a sabedoria, certo? Mas, é preciso estar aberto a aprender e, mais que isso, querer aprender! As lições estão disponíveis há milênios.

Durante a pandemia tive a oportunidade de fazer um curso de “introdução à filosofia clássica” na Nova Acrópole[4] – organização internacional presente em mais de 50 países, há mais de 60 anos. Naquela oportunidade, meu professor Gonzalo, que é argentino e conheceu o fundador da escola (seu compatriota), fez o seguinte desenho na lousa, enquanto ministrava uma aula sobre o Egito:

Peço desculpas por tê-la colado de próprio punho aqui… é que não tenho habilidades de designer gráfico. De toda sorte, essa figura serve amplamente para cunhos didáticos, tanto que eu a decorei.

A pirâmide invertida, na parte superior, representa os “grandes ideais universais”, que habitam o mundo das ideias e, portanto, abstrato (ou espiritual). Esse mundo se plasma no nosso mundo concreto/sensível por meio de sua densificação na atividade humana, que é material/física. Assim é que, tal qual num reflexo de espelho: a beleza universal se expressa entre nós por meio da arte; a bondade universal é materializada por meio da religião (em seu sentido ontológico[5]); a verdade é alcançada por meio da ciência; e, por fim, a justiça tem curso na sociedade por meio da política. Veja, amigo leitor, não sou eu quem está dizendo, são os egípcios e a própria sabedoria oriental.

Portanto, se você quer melhorar enquanto pessoa, ascender, atingir o cume do saber, precisa, necessariamente, burilar essas quatro competências em si: a arte, a religião, a ciência e a política. Nessa escalada, quanto mais se aprende, observa-se o quanto um dos lados do saber está próximo do outro, até que se interconectam no topo. Porém, conforme se aprende na Nova Acrópole[6], há quem prefira “nem ouvir falar” de ciência, religião, política ou arte, para não reconhecer que há muita dor nisso, mas pouco conhecimento. Tudo isto é produto do ponto de vista baixo em que nos encontramos em relação à aludida pirâmide – tais discussões só se produzem ao nível da base…

Outro artigo disponível no site da Nova Acrópole[7] também sublinha que a vida necessita dessas quatro expressões equilibradas. Quando não se tem a síntese, nós criamos uma vida pessoal em que crescem só partes do nosso conhecimento – às vezes existe um cientista maravilhoso, mas desiquilibrado; ou um religioso que não entende a vida sob o ponto de vista científico e vira um fanático; ou um artista que sob o ponto de vista político é um fracasso: tem uma arte maravilhosa, mas uma conduta ruim. Portanto, devemos nos inspirar em seres humanos que, de fato, atingiram a síntese da vida (o cume): Confúcio, Lao Tsé, Platão, Jesus Cristo, Buda, Maomé etc.

O cientista faz a mesma coisa: ele traduz ideias em conceitos e conceitos em aplicações – traduz em máquinas muito úteis, por exemplo. O filósofo faz a mesma coisa: tem ideias que ele capta e traduz em conceitos e experimenta na vida – artisticamente, religiosamente, politicamente e cientificamente. A diferença entre um louco e um sábio é que um sabe aplicar e o outro não. Um sabe sintetizar tudo de forma a utilizar para a sua vida, e o louco fica cada vez mais confuso.

Esse é o objeto da Filosofia: ela mexe no mundo das causas, e as causas são sempre mentais – do subjetivo para o objetivo. Na concepção de um objeto, primeiro concebe-se nas ideias, depois encontram-se motivações (eu quero fazer), depois arranjam-se recursos, compra-se material, aprendem-se técnicas etc., e depois faz-se o objeto – do metafísico ao físico.

Para pinçar um campo de intenso debate no Brasil atual, tomemos como objeto a política. Hoje em dia a visão que temos de um político é de um demagogo, aquele que tenta agradar a maioria, mediante argumentos fajutos. Isso não é a visão clássica de política! A visão clássica de política é uma forma de relação harmônica entre os seres humanos, onde eu tenho que encontrar regras construtivas e funcionais de relacionamento, tal como as células diferentes e com variadas atribuições se relacionam num organismo. É a capacidade de harmonizar todos os elementos. Por isso, é necessário revermos, enquanto povo, muitas coisas dentro do nosso campo político!

O conhecimento está amplamente interconectado, é preciso entender isso. Mesmo aquilo que nos ensina a ciência guarda consigo questões tão profundas que só se explicam no campo da religião. E é inspirador observar a harmonia presente no universo que habitamos – há uma sabedoria maior.

O início do cosmos teve como ato criador um evento singular: o “big bang”[8]. E toda a matéria, que dali provém, é formada por partículas comuns que, conforme sejam arranjadas, dão em tipos diferentes. A “teoria das cordas”[9], hoje amplamente aceita no campo científico, explica que esse arranjo em diferentes materiais depende da vibração dessas partículas fundamentais que, conforme sejam aceleradas, passam ao estado de energia e perdem a qualidade de matéria (e vice-versa). O mesmo é explicado por nossa tabela periódica[10], no campo da química: quanto menos energia mais prótons/matéria no núcleo de um átomo. E é por isso que toda a matéria existente no universo foi forjada nas estrelas. O Sol, p.ex., composto da fusão de átomos de hidrogênio em hélio implicará num filhote de “big bang”, afinal, um dia ele colapsará numa imensa explosão e seu material formará muitos outros elementos mais pesados. Perceba que o carbono, sexto elemento da tabela periódica, é o componente-chave de toda a vida que ocorre naturalmente na Terra. Aliás, muitas estrelas geram um campo gravitacional tão denso com sua morte que se transmutam em buracos negros, tendentes a reunir toda a matéria ao seu redor (e novos big bangs).

Nós, os seres humanos, já produzimos em laboratório um “bóson de Higgs”[11] ou “partícula de Deus”, como é chamado o bloco de montar de toda a matéria existente no universo. Porém, o mais intrigante não é isso (embora seja algo espetacular!). Veja, caro leitor, mais de três quartos do universo é composto por “matéria escura[12] – algo que o ser humano jamais viu, mapeou ou registrou. Isso mesmo: cerca de 80% de tudo o que existe por aí nós não fazemos a menor ideia do que seja… Ora, o telescópio espacial mais potente da história, James Webb[13], recentemente colocado em operação, nos apresentou em sua primeira imagem científica uma foto contendo milhares de galáxias, cuja luz viajou cerca de 13 bilhões de anos para chegar até nós. Ocorre que essa imagem é do tamanho de um grão de areia em nosso céu noturno! E olhe que a foto só traz consigo a matéria observável (ou seja, os 20% que nós conseguimos mapear e medir). Veja:

Segundo dados do INPE[14], estima-se que a nossa galáxia, a Via Láctea, possui de 200 a 400 bilhões de estrelas – as galáxias possuem em média centenas de bilhões de estrelas. E as estimativas também apontam para centenas de bilhões de galáxias no universo. Isto resultaria na existência de mais de 10 sextilhões de estrelas. Imagine então, caro leitor, quantos planetas existem ao redor de cada uma dessas estrelas! Teria Deus (ou o big bang) criado tudo isso apenas para que nós, os seres humanos, tivéssemos a graça de ser os únicos animais conscientes? Ou existem alienígenas?

Enfim, todo o conhecimento, regras, teorias etc. explicam uma verdade universal, que ainda não alcançamos, mas, não paramos de buscar. É preciso estar atento a isso para enxergar a Matrix.

Edifique sua pirâmide solidamente, meu amigo. Há quatro lados para cuidar, concomitantemente. Não adianta você estudar, se graduar, trabalhar, ser um bom profissional, ir regularmente à igreja (ou ao templo), gostar de boa música, frequentar museus, saraus, teatros etc. e, no campo político, se mostrar um primata intolerante, que vomita “verdades” aos berros, cancela adversários e deixa de falar com seus próprios parentes… Nós somos irmãos! Somos poeira cósmica. Não há bezerros de ouro, creia-me! As verdades só são alcançadas com ideias, mastigadas e absorvidas com calma.

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado