Tive alguma dificuldade para escolher o tema desta coluna. Passaram-se 20 dias desde a última – que foi parida às 04h30min, depois que despertei de um cochilo numa noite de insônia. Desta vez, pensei, escreverei sobre algo que tenha um conteúdo de positividade. Infelizmente, caro leitor, não foi possível. Peço desculpas, mas, é melhor trabalhar com a realidade do que fantasiar os jardins do Éden. Então, te digo: aperte o cinto, vai piorar!

Eu sempre assisti aos noticiários. Gosto de estar bem informado sobre o máximo de tópicos que me seja possível. E vejo uma conexão absurda entre temas improváveis – a vida é assim, complexa e interligada. Porém, já há algum tempo, deixei de assistir TV. Não há nada ali que agregue. Os canais mais tradicionais viraram um grande ‘vale a pena ver de novo’, com novelas e programas reprisados o dia todo. Há ainda rodas de comentaristas de esportes que, pela falta de atividades esportivas, se tornaram um tipo de coluna social com barraco e fofocas. Já os jornais são um obtuário, que seguem com os números movendo-se assustoramente para cima. Foram contabilizados 50 mil óbitos nos últimos 17 dias[1] – e assim atingimos a marca de 350 milhares de vidas perdidas.

Exausto, mudo os canais e há uma dezena em que se vende gado bovino de raça em algumas ‘parcelinhas’ de dois mil reais. Outra dezena vende ‘terreno no céu’, com promessas de curas e milagres instantâneos. Exite outro tanto vendendo joais, tapetes, e uma infinidade de outros eletroeletrônicos que você nunca tinha ouvido falar, mas, que são indispensáveis para sua existência. Ou seja, desligue a TV e vá ler um livro, meu amigo! Ou arrume uma forma de dar uma volta na rua, ou mesmo levar as crianças para brincar, ou o cachorro pra passear. Vá aguar as plantas, é tiro e queda para o mau humor. Só tenha a cautela de verificar se o horário permite (e use máscara). Não está na hora de ser cancelado no Twitter ou no Instagram, ou pior, de acabar numa cela de prisão…

Estamos precisando, quero dizer com tudo isso, de manter nossa sanidade mental. No início da pandemia eu tinha certeza de que ninguém iria mudar, ou seja, daríamos no mesmo lugar de onde paramos, quando essa praga acabasse. Então, na última quinta-feira à noite, numa aula de filosofia online ministrada pela Nova Acrópole[2], entendi como eu fui juvenil nesse raciocínio. O mundo mudou, muito!! E as pessoas mudaram também, para sempre – inclusive você que jura que não mudou, acredite. É claro que uns, que já eram bons, tornaram-se melhores. Outros, ruins, transmutaram-se em monstros. Além de uma infinidade de possibilidades na meiuca. Porém, todos mudaram. Convém que você, nesse quadro, compreenda as mudanças e tente fazê-las positivas para a sua existência.

Com essa introdução, mais abstrata, quis preparar o amigo leitor para o primeiro dos fatos absolutamente difíceis de digerir, além dos 350 mil óbitos de nossos compatriotas: num país que tem cerca de 211 milhões de habitantes, atualmente, mais de 116 milhões[3] não têm comida suficiente ou passam fome. Você leu bem, ilustre leitor, o número é esse! Segundo pesquisa feita em dezembro de 2020 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), o número, que é mais da metade da população brasileira, engloba pessoas que não se alimentam como deveriam, com qualidade e em quantidade suficiente. Ele contém o maior índice de famintos em solo nacional em 17 anos, e representa quase o dobro daquele registrado em 2018.

Antes que você comece a procurar o culpado – se foi FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro – lembro que estamos na maior pandemia em 100 anos na Terra, sendo certo que saúde e economia estão interligadas, intimamente. No ano passado somente aqui em Ribeirão Preto/SP foram mais de 120 dias na fase mais restrita (vermelha). Já em 2021 tudo está fechado no Estado de São Paulo (inteiro) desde o dia 03 de março, sendo que a tendência é que assim permaneça nos meses de abril e maio, no mínimo – afinal, segundo a Fiocruz[4], a pandemia ainda vai piorar bastante em abril. Ou seja, seriam cerca de 200 dias com tudo fechado (exceto supermercados, farmácias e hospitais) em dois anos. Um terço do período, para arredondar. Não há economia que suporte um tranco desses, a não ser que estivéssemos com a casa muito arrumada – mas, tava mais para casa da mãe Joana.

Na reportagem da CNN[5], a sanitarista e pesquisadora Bianca Leandro relaciona o cenário caótico da pandemia de Covid-19 com a desigualdade socioeconômica no país. Segundo ela, o aumento de mortes e casos de Covid-19 do Brasil não pode ser analisado apenas com base nas condições da rede de atendimento em saúde e à circulação de pessoas: “vem acompanhado de outras condições, como o aumento da fome e a dificuldade de acesso a renda”. Bingo!! Não existe essa história de “falsa dicotomia” que gostam de repetir os jornalistas. Saúde e economia compõem a mesma moeda, mas, hoje, observa-se que só vale cara ou coroa, conforme o Decreto… Vá explicar aos 116 milhões de pessoas que estão com problemas de segurança alimentar, ou passando fome, que é preciso ficar de 15 a 30 dias em casa, para termos uma melhora nos índices de saúde. Não existe lockdown sem auxílio em dinheiro. Mas, também não dá para pagar duas notas de R$100,00 e achar que vai bastar para manter o ‘distanciamento social’, se 70% do PIB brasileiro[6] vem do setor de serviços. Ora, quanto disso não comporta a prestação de serviços online? E mais: se o sujeito está passando fome, como é possível esperar que tenha computador e internet de boa qualidade para trabalhar de casa? É preciso ter mais clareza e menos demagogia.

A grande questão é que mesmo que tenhamos perdido a batalha pela vida até aqui (ainda estamos lutando) um novo flanco de derrota se abriu e, nesse, há chances de sermos massacrados pelas próximas duas décadas, pelo menos – atende pelo nome de economia. Essa derrota foi cautelosamente planejada e alimentada nos últimos 30 anos (ou mais). Não nos preparamos para um ‘ataque inimigo’ (um momento de crise considerável), e aí fomos atacados pelo inimigo mais terrível em 100 anos. Não vai sobrar muita coisa…

Segundo José Márcio Camargo, da Genial Investimentos e também professor da PUC-Rio (reportagem do UOL[7]), o Brasil é historicamente descuidado com orçamento público federal. Antes, os parlamentares podiam elevar as despesas do orçamento inflando os custos com suas emendas além das receitas previstas porque se dava um jeito de financiar a diferença. Até 1994, isso era feito com a hiperinflação. Os preços subiam, corroíam o valor dos gastos, e a conta fechava – quem pagava a conta era a população. Veio a redução da inflação, após o Plano Real em 1994. Então, a diferença entre gastos públicos maiores que as receitas passou a ser paga com aumento de impostos – a carga tributária no país saltou de 25% para 35% de 1994 a 2010. Depois de 2010, o jeito de financiar a gastança dos governos inflada pelos deputados no Congresso foi aumentar a dívida pública, que subiu de 60% do PIB (Produto Interno Bruto) para perto de 90%, atualmente. Foi assim que o orçamento de 2021 se transformou na ‘apoteose das pedaladas’ ou ‘peça de ficção[8]’. Tanto que sua sanção ou não por Bolsonaro pode implicar no seu impeachment. É isso.

O que nos aguarda economicamente é desolador, amigo leitor. Em relatório a clientes, o banco BTG[9] revisou para pior o cenário da economia brasileira neste ano: a estimativa para o dólar no fim do ano subiu de R$5,20 para R$5,40 e a previsão de inflação (IPCA) amentou de 4,7% para 5% no ano. A XP Investimentos[10] trouxe previsão indêntica no início do mês passado, ou seja, uma piora em projeções para câmbio, juros, inflação e atividade econômica em 2021, sendo esperada taxa Selic a 5% no final do ano, com um PIB de cerca de 3% em 2021 e de 1,5% em 2022 (lembrando que o tombo em 2020 foi de 4,1%; e isso depois do tombo anterior, de 3,6% em 2015 e de 3,3% em 2016[11]).

O descontrole é tão grande que o país caminha rapidamente para entrar num quadro de ‘dominância fiscal’, caso não corrija com urgência os rumos das contas públicas. Veja, ilustre leitor, em linha gerais foi precisamente isso o que aconteceu na Venezuela e o que está tendo curso atualmente na Argentina. Sugiro que se informe a respeito. Uma reportagem do G1[12] trouxe um resuminho, que compartilho aqui, no próximo parágrafo.

A forma tradicional de o Banco Central controlar a inflação é pelo aumento da taxa básica de juros. Na prática, a alta da Selic encarece o custo do crédito para famílias e empresas, o que contribui para ‘esfriar’ a atividade econômica e, consequentemente, a inflação tende a perder força – menos investimentos e menos consumo desincentivam a alta de preços. Em um cenário de dominância fiscal, a desordem das contas públicas faz com que a alta dos juros não tenha o efeito esperado – ou seja, a crise fiscal passa a dominar a política econômica do país. Nesse ciclo perverso, o aumento da Selic não tem o efeito esperado sobre o controle da inflação. Em vez disso, ele eleva muito o endividamento do país e afugenta os investidores, diante do medo de insolvência – o que provoca a desvalorização da moeda e, consequentemente, contribui para o aumento dos preços, num efeito oposto ao desejado. Para os economistas, a possibilidade desse cenário se concretizar ganhou força depois da aprovação do orçamento de 2021 pelo Congresso Nacional.

Desta forma, para alguém que tem 38 anos, como eu, é certo que o país vive seu maior problema econômico, desde a hiperinflação. É justamente daí que brota a fome! O Estado precisa ser menor (e não maior) para corrigir esse problema. Tem que ter foco em saúde, educação e segurança pública. Dentro da seara da saúde, investir em saneamento básico e viabilizar um programa robusto de transferência de renda, para segurança alimentar. Na educação, majorar o investimento no ensino fundamental público. Na segurança, utilizar as ferramentas tecnológicas para integração das polícias e combate ao crime com inteligência, alocando recursos nos pontos chave das grandes máfias e cartéis do crime. Enfim, não há árvore de dinheiro amigo! É preciso diminuir os gastos do nosso Estado gigantesco e fazer o dinheiro dos tributos fluir para as áreas essenciais, com mais qualidade, num primeiro momento (já que é inviável majorar tributos no Brasil) e com mais quantidade num segundo (depois de vencermos os déficts que estão nos engolindo).

Resumindo: se a pandemia mudou o mundo, as pessoas e a história, deveríamos nós também evoluirmos, estudarmos, aprendermos. Vai piorar… E em 2022, eleger Lula ou Bolsonaro não vai consertar em nada nosso problema. Foquemos numa alternativa!!

Referências:

[1] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/04/10/brasil-350-mil-mortes-covid-19.htm

[2] https://www.acropole.org.br/

[3] https://www.istoedinheiro.com.br/mais-de-116-milhoes-de-brasileiros-nao-tem-comida-suficiente-ou-passam-fome-diz-pesquisa/

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/04/06/pesquisadores-da-fiocruz-alertam-para-piora-da-covid-e-sugerem-lockdown-nacional

[5] https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/04/06/pesquisadores-da-fiocruz-alertam-para-piora-da-covid-e-sugerem-lockdown-nacional

[6] https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2020/08/4868441-servicos-reagem-e-sobem-5–em-junho.html

[7] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/04/11/com-novela-do-orcamento-mercado-ja-calcula-impeachment-de-bolsonaro.htm

[8] https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/03/30/por-que-economistas-chamam-orcamento-para-2021-de-peca-de-ficcao.htm

[9] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/04/11/com-novela-do-orcamento-mercado-ja-calcula-impeachment-de-bolsonaro.htm

[10] https://br.investing.com/news/economic-indicators/xp-eleva-previsao-para-dolar-e-ve-selic-de-5-em-2021-com-inflacao-maior-pandemia-e-risco-fiscal-840526?ampMode=1

[11] https://infograficos.gazetadopovo.com.br/economia/pib-do-brasil/

[12] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/04/10/alta-dos-juros-pode-se-tornar-ineficaz-para-controlar-a-inflacao-entenda.ghtml

FOTO: https://www.google.com/search?q=economia+x+saude&rlz=1C1GCEA_enBR918BR918&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwj1zp-9zfbvAhVkD7kGHQIkDdAQ_AUoAXoECAEQAw&biw=1366&bih=657#imgrc=NAAa3I_OdZ3VjM

Ricardo Dantas

Ricardo Dantas

Advogado